segunda-feira, abril 28, 2025

Cruz e Sousa - impressões após uma leitura

 

“Por que estradas caminhei, monge hirto das desilusões, conhecendo os gelos e os fundamentos da Dor, dessa Dor estranha, formidável, terrível, que canta e chora Réquiem nas árvores, nos mares, nos ventos, nas tempestades, só e taciturnamente ouvindo: Esperar! Esperar! Esperar!” 

Cruz e Sousa

 Passei quase três meses lendo a biografia sobre o poeta catarinense Cruz e Sousa, escrita por Uelinton Farias Alves. O livro é sem sombras de dúvidas um dos melhores já produzidos sobre o autor simbolista. É fruto de uma pesquisa exaustiva, sóbria, profunda, crítica, honesta. Acredito que faça jus à importância do poeta. Há ainda inúmeros fatos enevoados sobre o “Dante Negro” como ficou conhecido pelo brilhantismo com que manejava a palavra.

Cruz e Sousa é um dos poetas mais marginais da história da literatura brasileira. Ao longo de sua curta existência, buscou incansavelmente o reconhecimento, que somente veio após a sua morte. Destinado a ser mais um negro em um país de escravos, Cruz e Sousa viola o determinismo histórico. Nascido em Santa Catarina, na cidade de Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis (homenagem dada ao marechal Floriano Peixoto), de pais alforriados, Cruz e Sousa conseguiu, graças a uma boa educação patrocinada pelo ex-senhor dos seus pais, o marechal Guilherme Xavier de Sousa, um lugar de honra entre os intelectuais brasileiros. O militar lutara no Paraguai. O poeta também herdou dele o sobrenome Sousa.

O garoto João estudou no Liceu Catarinense, a melhor escola da província. Recebeu esmerada educação em latim, grego e francês. Além disso, estudou com alemão Fritz Müller, um botânico e entusiasta das ideias de Charles Darwin. É possível observar o quanto essa formação foi fundamental para o poeta. Sem isso ele não teria chegado tão longe na máquina de moer gente que era a sociedade escravista do século XIX, cujos índices de analfabetismo eram altos. As escolas eram frequentadas pelos filhos das elites – barões, militares graduados, donos de terra, políticos etc. Poucos negros conseguiam um lugar ao sol.

Um fato, por exemplo, execrável ocorreu em 1883. Recomendado como promotor para o município de Laguna, foi recusado por ser negro. Esses episódios se repetiriam ao longo de sua vida. É possível que tenha se dado mesmo com a sua literatura. Em um país de negros, mulatos e miscigenados, o preconceito era uma realidade experimentada em diversos setores da sociedade. Como conceber um negro culto, capaz de dominar francês e latim em país que experimenta um apagão nas letras?

Participou de diversos periódicos. Chegou a fundar um, mas que não teve vida longeva. Foi preciso sair de sua cidade natal e viver o desterro. Migrou para o Rio de Janeiro, capital do Império e, mais tarde, da República. Procurou participar do centro convulsivo da intelectualidade Brasileira. Afinal, no Rio de Janeiro viviam Machado de Assis, um mulato reservado e que, apesar da fama e da origem, prefere o indiferente silêncio a manifestar publicamente qualquer simpatia a Cruz e Sousa, mesmo nos momentos mais críticos da vida do poeta. No Rio, vivia Olavo Bilac, que“limava” os seus versos como parnasiano que vivia em torre de marfim. Os críticos José Veríssimo, Silvio Romero e Araripe Junior. Mesmo José do Patrocínio, é-lhe indiferente.

Todavia, não estava sozinho. Nestor Vitor e Oscar Rosa são figuras fundamentais. Eles sempre estão presentes dos momentos mais complexos da vida do poeta. Até mesmo na hora da morte, os dois acorrem para que o reconhecimento devido do poeta ocorra. No Rio de Janeiro, o poeta escreve incansavelmente. Sua produção era quase que industrial. Produzia textos em prosa e poemas. Era-lhe fácil, quase que corriqueiro sentar e escrever sonetos carregados de lirismo, de individualismo, de uma musicalidade incomum. Como nos famosos versos: 

Ah! plangentes violões dormentes, mornos,

Soluços ao luar, choros ao vento…

Tristes perfis, os mais vagos contornos,

Bocas murmurejantes de lamento.


Noites de além, remotas, que eu recordo,

Noites da solidão, noites remotas

Que nos azuis da Fantasia bordo,

Vou constelando de visões ignotas.


Sutis palpitações à luz da lua,

Anseio dos momentos mais saudosos,

Quando lá choram na deserta rua

As cordas vivas dos violões chorosos.


Quando os sons dos violões vão soluçando,

Quando os sons dos violões nas cordas gemem,

E vão dilacerando e deliciando,

Rasgando as almas que nas sombras tremem.



Harmonias que pungem, que laceram,

Dedos nervosos e ágeis que percorrem

Cordas e um mundo de dolências geram

Gemidos, prantos, que no espaço morrem…


E sons soturnos, suspiradas mágoas,

Mágoas amargas e melancolias,

No sussurro monótono das águas,

Noturnamente, entre ramagens frias.


Vozes veladas, veludosas vozes,

Volúpias dos violões, vozes veladas,

Vagam nos velhos vórtices velozes

Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.


Tudo nas cordas dos violões ecoa

E vibra e se contorce no ar, convulso…

Tudo na noite, tudo clama e voa

Sob a febril agitação de um pulso.


Que esses violões nevoentos e tristonhos

São ilhas de degredo atroz, funéreo,

Para onde vão, fatigadas do sonho,

Almas que se abismaram no mistério. […] 
 
Era notável a capacidade do poeta para criar sinestesias. Ele consegue isso por meio de aliterações, recurso que costumava usar em seus poemas. A aliteração é um recurso fônico que intensifica a musicalidade.

Mais tarde, o antropólogo francês Roger Bastide diria que Cruz e Sousa foi um dos grandes simbolistas do mundo. E a grande questão é: como Cruz e Sousa conseguiu tão grande proeza? Como já afirmado, o poeta só conseguiu o reconhecimento após a sua morte, aos 36 anos de idade. Tuberculoso, em um gesto de desespero procurou as serras de Minas Gerais, junto com a sua esposa Gavita, grávida de quatro meses, a fim de procurar uma melhora para o seu estado deplorável de saúda. Hospedou-se em uma pensão, mas veio a óbito. Foi transladado em um vagão de trem que transportava animais. No cubículo fechado, sem janelas, o chão conspurcado pelas ejeções dos animais, o corpo violado pela tuberculose pesava cerca de 40 quilos. Apenas coberto por tecido ordinário, o trem descia tal qual uma serpente trazendo os restos mortais de um dos mais geniais poetas da língua portuguesa. Recebeu a alcunha de Dante Negro, de Cisne Negro, Diamante Negro, Magoado Eleito, Tedioso e Torturado Sonhador, Grandiosos e Imaculado Cenobita, Arcanjo Rebelado. 
O livro de Uelinton Farias Alves

Conhecendo a sua vida, entendemos a afirmação de Bastide. A afirmação de que Cruz e Sousa fazia referências à cor branca por ser preto é uma grande aberração. Uso da palavra para o poeta seguia um método. Como diz Alfredo Bosi, o poeta era esquemático. Costumava usar “substantivos abstratos” e “processos sinestésicos” e o encadeamento de construções que mais o aproximava dos parnasianos. Cruz e Sousa não é parnasiano no conteúdo, mas o é na forma. Seus poemas são rigorosos. Se fazia poemas rigorosos e quase parnasianos, por que o poeta não logrou sucesso em vida? Responder essa pergunta não é tão fácil, mas existem algumas pistas:

(1)    A questão racial. Cruz e Sousa era um homem negro. É possível que esse aspecto tenha chamado atenção e a barreira da cor tenha sido um elemento que criou um inevitável impedimento.

(2)    O fato de o poeta não ser do Rio de Janeiro. Era um tipo de forasteiro. O julgamento talvez surgisse em forma de pergunta: “Quem é esse negro que veio de longe?” “Chegou ao nosso meio querendo causar”. A intelectualidade que domina também é formada por panelinhas.

(3)    O fato de os poemas simbolistas não encontrarem lugar em um meio eivado de parnasianismo. À época de Cruz e Sousa, além do parnasianismo na poesia, o realismo e o naturalismo eram concepções estéticas que estavam em voga. O simbolismo era um tipo marginal de expressão estética. Enquanto na França havia capturado os intelectuais, no Brasil, ele ficou como elemento estético periférico. Além disso, os intelectuais brasileiros flertavam filosoficamente com o positivismo, rechaçado pelos simbolistas. O simbolismo procurava enfatizar o irracionalismo, a morte, o misticismo, a religiosidade, o satanismo, a sensualidade, a subjetividade acentuada (individualismo), a musicalidade, as sinestesias. Enquanto o naturalismo e o realismo fincavam o pé no mundo real, o simbolismo era transcendentalista à procura da forma, da intuição, do vago, do impreciso. Apalpava-se o vazio, um vazio repleto de elementos intangíveis, impermeáveis. Cruz e Sousa manifesta-se assim em seus famosos versos:

"Ó Formas alvas, brancas, Formas claras

De luares, de neves, de neblinas!...

Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...

Incensos dos turíbulos das aras..."

Ou seja, filosófica e esteticamente o poeta não atendia aos requisitos para entrar no clube dos intelectuais cariocas. É preterido quando da formação da Academia Brasileira de Letras. Machado, o grande idealizador da confraria, imitando a Academia Francesa, não realiza nenhuma distinção ao poeta. Desse modo, a vida do poeta foi marcada pela preterição. Ao longo do tempo, sua obra ganhou visibilidade graças aos esforços dos amigos.

Após sua morte, houve uma espécie de conversão de alguns intelectuais à sua obra, embora outros permanecessem indiferentes e solenes, como é o caso de Machado de Assis. Sua alma angustiada e solitária alçava voos imaculados à procura da indizível forma. Em um mundo maculado pela indiferença, pela injustiça, pelo orgulho, sua rebelião se fazia por meio de seus versos trabalhados com disciplina e paixão.

terça-feira, abril 01, 2025

Um encontro

Cena do filme "Rapsódia em agosto", de Akira Kurozawa
 

               “Não existe morte natural. Nada que acontece a um homem é natural, já que sua presença coloca o mundo em questão”.

Simone de Beauvoir

Nestes dias iniciais de 2025, estou passando alguns dias na minha terra de nascimento; aquilo que os antigos chamavam de “pátria”, “a terra dos pais”. É muito representativo realizar esse tipo de visitação. Ajuda-me a entender certos fenômenos, certos pensamentos; a organizar os sentimentos; a compreender a maneira como ajo; meus silêncios, minhas dúvidas, medos e minha disposição incansável para a casmurrice. Alguns fatos são admitidos ou compreendidos após o trabalho do tempo.

Esta semana, fui com minha mãe visitar aquela que é considerada minha madrinha. Há uma tradição entre os nordestinos e, talvez, em outras regiões do Brasil de, por estimação, dar o filho, quando este nasce, para que alguém seja padrinho ou madrinha. Tal escolha reflete um tipo de honra e potencializa laços de fraternidade. Evidencia-se nessa ação um certo lastro virtuoso, pois certas qualidades precisam ser analisadas. Geralmente, a escolha solidificará ainda mais a amizade entre as partes envolvidas. As gerações mais novas não entendem o significado desse tipo de escolha. O costume tem se perdido ao longo do tempo.

Não atribuo muita relevância a esse tipo de tradição, mas respeito o seu significado. Convocado por minha mãe, fui de maneira cordata. Era uma questão de honra que eu fosse visitar a comadre Bil. Cheguei à casa pequena, no bairro do Cajá, em Vitória de Santo Antão – minha cidade. A casa onde já estivera antes, é pequena, acanhada, despojada de conforto, espremida entre outras casas semelhantes. A rua de pedra irregular é estreita. Ao chegar, os vizinhos ficaram observando quem eram os forasteiros. Suas três filhas nos recepcionaram. Depois das amenidades iniciais, fui conduzido ao quarto para poder falar com ela. Em um espaço pequeno, abafado, sentada sobre uma cama, ela se encontrava. Acometida por uma cegueira, resultante de um glaucoma, comadre Bil aguardava com o seu aspecto pequeno e frágil. Falamos rapidamente. Dei a benção a pedido de minha mãe – um gesto que indicador de respeito. Aquiesci por entender o que o momento representava. Minha mãe – parece que intencionalmente saiu; fiquei sozinho com aquela figura pequena, habitada por memórias e vivências. Fazia um bom tempo que eu não dirigia a palavra àquela pessoa que se encontrava sobre cama, em um espaço exíguo, de aspecto encurvado. Olhei buscando resgatar outras memórias. Imagens dela ainda jovem. A memória não realizou exercício tão promissor.

Narrou-me com sua fala ordeira e contada, uma multidão de fatos. Passeamos pelo passado. Ela contou sobre como se tornou vizinha do meu avô, quando tinha dezenove anos de idade. Descreveu pormenores sobre os meus tios com uma desenvoltura bíblica. Falou sobre as árvores frutíferas que cultivara em seu sítio, antes da mudança para Vitória de Santo Antão, algo que se deu há quase quarenta anos.

Tenho memórias esparsas de como era a sua casa. A sala com plantas. Algumas trepadeiras. Suas filhas costumavam passar óleo de soja nas folhas para que elas brilhassem. O chão limpo. Os sofás rústicos. A imagem dela e do meu padrinho desenhada na parede. O bigode desenhado do meu padrinho. O corredor que levava à cozinha. Na caminhada que se fazia da sala à cozinha, era possível passar por dois ou três quartos. Um pano ordinário fazia o papel de cortina. Não era possível enxergar nada. Eram furnas misteriosas. Minha memória não consegue fixar nenhuma forma naquele espaço. A cozinha também é um espaço, em minha memória, sem móveis; não consigo formular um pedaço da silhueta de qualquer coisa.

A porta era daquelas com dois compartimentos. Era possível abrir a parte de cima e deixar a parte de baixo fechada. Da cozinha, era possível enxergar, do lado direito, uma ampla porção do sítio. Em certa ocasião, em um mês bastante chuvoso, aconteceu um episódio que permanece em minha cabeça. João Severo, meu padrinho, plantou um pé de banana nanica. Com a chuva, o adubo e a boa terra, a planta deu um cacho de banana enorme. A planta inclinava-se para o chão. O pé da planta era sustentado por uma estaca, que foi providenciada para que a planta não viesse abaixo. Em um dia qualquer, uma torrencial chuva, seguida de um vento uivante, ameaçava derrubar o pé de banana. Seria uma grande perda. Estávamos todos na cozinha. João Severo ao constatar o que estava para acontecer, saiu em disparada a fim de remediar o que parecia inevitável. Ele desejava firmar outra estaca. A chuva grossa e o vento vigoroso davam a aparência ao meu padrinho de uma figura pequena que lutava contra forças ancestrais. A camisa aberta e o chapéu de palha conferiam à sua aparência o aspecto de um xógum que enfrentava as forças naturais com bravia inteligência e resistência. Não lembro qual foi o desfecho da luta.

Relaciono a cena de João Severo em sua luta particular, épica, para não permitir que o pé de bananeira viesse a pique, por causa dos golpes lancinantes que tomava das forças naturais, com imagem da senhora pequena e frágil que caminha empunhando um guarda-chuva, em meio à tempestade, do filme “Rapsódia em agosto”, de Akira Kurozawa. A delicada figura curvada avança inexpugnável, decididamente. Tudo é grande para ela. Associo o meu padrinho a essa imagem. Sua teimosia resistente contra o vento rodopiante e a chuva espessa era a luta do pescador de “O velho e o mar”, de Ernest Hemingway. Enquanto conversava com ela, esses temas passavam pela minha cabeça como cenas de um filme.

Com 78 anos de idade, impedida de caminhar (perdeu o movimento das pernas, após uma queda e uma cirurgia sem sucesso), cega, ela depende das filhas. A certeza que me ficou é que há memórias vivas dentro dela. Sua lucidez é um farol na noite escura em que vive. O corpo impôs certos condicionamentos. Impedida de ver, ela lembra; sem possibilidades de locomoção, ela demonstra uma ambivalência entre a necessidade e a suficiência.

Fiquei com sua imagem pequenina. Impactou-me vê-la daquela forma. Daí, volto à frase de Beauvoir: “nada que aconteça ao homem é natural”. Somos mais que os determinismos biológicos do corpo. Todavia, só podemos ser no corpo. Dessa forma, somos a mistura da fragilidade corpórea com a potência dos afetos, ou seja, daquilo que nos faz ser e existir.

Suas filhas disseram à minha mãe que ela chorou bastante quando fomos embora. Disse que gostou de ter conversado comigo. Verbalizou que gostaria de ter me visto, constatado como eu estou fisicamente.

Escrito em janeiro de 2025, em Vitória de Santo Antão-PE