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A entrada do Museu. Ao fundo, uma igreja e a imagem de Cristo cheio de cintilações simbólicas |
No período da Guerra Fria, que vai do final da Segunda Grande Guerra até a derrocada da União Soviética, os direitos democráticos passaram por uma enorme crise na América Latina. Trabalhadores, estudantes, militantes dos mais variados matizes resistiram de forma heroica a essa ameaça materializada. Ditaduras se multiplicaram por todo continente, orquestradas pela Agência de Inteligência Americana (CIA) a fim de proteger os interesses do capital. O objetivo era romper com o avanço de forças progressistas, com as melhorias sociais e toda sorte de direitos que viessem acabar com os desníveis que existem no continente desde o processo de colonização.
Por isso, é fácil de entender o porquê de tantos golpes perpetrados por militares. Se formos analisar a cronologia do continente, os golpes se sucederam numa espécie de efeito cascata: Guatemala e Paraguai (1954), Argentina (1962), Brasil (1964), Peru (1968), Uruguai e Chile (1973), Nicarágua (1979), Bolívia (1982). Em todos esses países, as ditaduras instaladas buscaram solapar os avanços sociais. Nesses locais, onde as fraturas da história ainda estão expostas, onde a colonização e imperialismo impediram que as desigualdades, que a divisão da terra, que as riquezas internas de cada país fossem repartidas, os nervos dos acúmulos negativos da história ainda estão abertos - e bem abertos.
Em muitos desses países, após o início da redemocratização, foram montadas comissões que têm por finalidade colocar às claras esses anos de obscuridade política. Dezenas de milhares de pessoas morreram nesses países. Outras tantas foram torturadas. E muitos dos torturadores estão por aí, recebendo dinheiro do Estado. É o caso, por exemplo, do Brasil que conseguiu instalar a sua Comissão da Verdade somente em 2012. E mesmo tendo feito isso após tanto tempo, a sociedade ainda não entendeu a sua importância para o fortalecimento da própria identidade nacional, pois um país que não acerta contas com a sua história está fadado a repetir os mesmos desmandos, as mesmas injustiças do passado.
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Minha esposa me pegou em um momento de introspecção |
No último dia em que estive no Chile, 18/07, fui ao extraordinário Museu de Direitos Humanos (Museu de La Memoria y los Derechos Humanos), construído no primeiro mandato da administração de Michele Bachelett. Embora tenha ficado nele apenas 30 minutos (estava atrasado, pois o voo seria em pouco tempo), foi o suficiente para que eu me enchesse de emoção. O lugar é bastante amplo. Na entrada, escritos numa das paredes adjacentes ao prédio, estão os artigos da Declaração dos Direitos Humanos. No saguão de entrada, há a notícia fato de países em que os direitos humanos são violados e o que tem sido feito para investigar esses abusos.
O prédio é constituído por três andares. Em cada andar se tem uma amostra de como as tiranias trazem violações e essas mesmas violações produzem uma sociedade em que a injustiça e o medo são agentes constantes, patológicos. Não visitei todos os andares. Fiquei apenas no primeiro. Lá eu pude vê como a Ditadura chilena foi terrível. Existem vários documentos - fotos, jornais, textos produzidos por crianças etc - que foram doados pelos próprios de familiares que ainda hoje choram os seus parentes sumidos. É possível colocar um fone e ouvir vários documentários que mostram imagens de época. As imagens retratam o Chile em setembro de 1973, o ano do golpe de Pinochet. Como os militares tomaram o poder e massacraram de forma impiedosa homens, mulheres e crianças; como o Palácio de la Moneda foi bombardeado - lá estava Salvador Allende, uma das mais representativas lideranças socialistas do continente.
Numa sala contígua há um espaço reservado à memória de centenas de crianças que foram torturadas e mortas pelos militares. Vários desenhos retratam os sentimentos dessas crianças e como elas são marcadas de forma impiedosa. Mas, foi em um espaço desse mesmo andar que eu não pude conter as lágrimas. Há uma sala com velas simbólicas - que nunca se apagam. E quando se entra nessa sala, olha-se direto para uma parede enorme com a milhares de fotos de pessoas que foram torturadas e mortas. Quando olhei aquela imagem, algo se contorceu dentro de mim. Não pude deixar de chorar. Ali estavam fisionomias diversas, que acreditavam em um mundo melhor. Seres anônimos. Não cheguei a conhecê-los nem eles a mim. Cada rosto expressava um grito. Um silêncio povoado por protestos. Um gesto de indignação. Um sonho. Um desejo. Um rugido de liberdade. Um brado inquietante por um mundo em que a liberdade não seja apenas uma palavra de dicionário ou um gesto esquecido, abandonado. Mas que se torne em credo, uma força capaz de mobilizar as pessoas para ações verdadeiramente solidárias.
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Pode se ver o bonito prédio ao fundo |
Minha esposa se aproximou de mim e me abraçou. Uma torrente enorme inundou a minha alma. Lembrei as palavras de Cristo: "Bem-aventurados aqueles que têm fome e sede justiça, porque serão fartos"; "Bem-aventurados aqueles que choram, porque serão consolados"; "Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus". E pensei nas promessas de Cristo, alguém que morreu por causa da justiça; porque falou em igualdade e irmandade entre os homens.
Penso que todo mundo deveria ter a oportunidade de visitar aquele museu. É um lugar fantástico. Se um dia voltar ao Chile, quero demorar mais tempo naquele espaço. Quero sentar no chão. Olhar, sentir, solidarizar-me com aqueles sofreram e morreram - e tantos que sofrem e morrem - por causa da justiça. O Chile é país que tem aprendido com a sua história. O simples fato do Governo Federal do país construir um lugar como aquele é um indício de um acerto inexpugnável com o seu passado.
Quando se fala em direitos humanos, ainda há pessoas que abrem a boca contra essa ideia. Lutar pelos direitos humanos é lutar por um mundo em que ninguém seja punido por pensar diferente, por discordar das regras estabelecidas. Simplesmente, viver o processo de alteridade. E aí eu evoco a Cristo mais uma vez: "Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é a lei e os profetas".