"Quem dormiu no chão deve lembra-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas".
Graciliano Ramos, in Memórias do Cárcere, p. 34
Estabelecer
contato com a literatura de Graciliano Ramos, permite-nos uma
experiência indelével com a palavra. Para o escritor alagoano, a palavra
é uma centelha poderosa capaz de produzir incêndios incontroláveis aos
sentidos. Desde o fim de minha adolescência que tenho estabelecido um
contato e uma admiração elevada pelo grande escritor. Desde o primeiro
livro que li dele - São Bernardo ou Memórias do Cárcere? - que
todos as vezes que vou aos seus textos, sou acometido por uma sensação
de que estou diante de algo extraordinário; da alta literatura, da
narrativa orquestrada por um maestro de gestos secos, ásperos e pouco
afeito à lisonja. Conhecido pela discrição, pelas poucas palavras, pela
biliosa relação que mantinha em algumas situações, é possível sentir a
torrente de realismo, de honestidade e força da sua literatura.
Quem
quiser descobrir o efeito que as palavras possuem. Como elas devem ser
limadas, esmerilhadas, catadas, lançadas na bateia da grande narrativa, é
preciso recorrer ao Graça. Nele, percebemos a ausência de cortesia; o
que há é a dureza contra os ademanes da bajulação, contra a blandícia
escondida nas convenções sociais. Essa seriedade, esse vigor, extraído
da vida, foi posto em sua literatura. Graça é um nome que traduz aquilo
que João Cabral de Melo Neto expressou de forma arrojada em seu
antológico Educação pela Pedra:
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.
Sim!
Havia uma pedra em sua literatura, de "carnadura concreta", de
adensamento compacto; capaz de infundir "a lição de moral"; de malear
lâminas com sua "resistência fria". A facticidade é realidade que não se
pode negar, por isso, a pedra simplesmente declara a sua presença.
Diz-se enquanto realidade no mundo. Em Graciliano, a palavra é pedra; e
ela diz mais que qualquer coisa, é sólida, promove uma experiência
concreta. Ele não buscava se meter em grandes divagações, em digressões,
em perambulações elogiosas. Sua preocupação era narrar o fato. Dizê-lo.
Assumi-lo enquanto realidade inolvidável.
Essas impressões se renovaram após a terceira - irrequieta e deliciosa - leitura que realizei de Memórias do Cárcere,
livro cuja singularidade me permitiu enxergar o inconfundível sabor da
literatura. Foi com ele, ainda no final do ensino médio, que desejei
aprender a escrever. Todo aquele comedimento, o método, a frase
perfeita, o período curto às vezes, mas, lancinante, a esmiuçar o tecido
nervoso da realidade. Sim! Foi com essa literatura que corta como um
bisturi; que não está preocupada com os brincos e maquiagens que
escondem a face nua do mundo e de suas amarras, que desejei aprender a
usar a palavra. As palavras são tijolos que constroem catedrais
invisíveis de discursos. São elas que dão sentido ao mundo humano. Elas
distorcem fatos verdadeiros. Maximizam acontecimentos irrelevantes e a
depender do locutor, pode transformar poças de água, em grandes oceanos.
Saber usá-las. Medi-las com diligência. Apascentá-las com o labor e
diligência de um pastor é um dever de todo sujeito que se propõe a
enunciá-las. Graça aprendeu isso como ninguém. Talvez, pelo fato de ter
crescido em ambiente hostil à palavra. Os pais eram duros. A mãe, Maria
Augusta Ferro, revelava dureza até no nome. Essa dureza fica evidente,
por exemplo, no capítulo Inferno, de Infância. Ou no outro capítulo do mesmo livro - Um cinturão
- que narra a surra que tomou do pai, um sujeito de "modos brutais,
coléricos". Neste livro encontramos uma afirmação bastante emblemática
que serve de fórmula metalinguística à sua literatura: "Na escuridão
percebi o valor enorme das palavras".
Memórias do Cárcere
é um livro póstumo. Foi escrito nos anos finais da vida do grande
escritor. Sua saúde já estava bastante combalida quando começou a
escrevê-lo. Graciliano trabalhou por árduas semanas. Não chegou a
concluir o último volume. Interrompeu para escrever Viagens,
livro que narra suas impressões da visita que realizou à União Soviética
e aos países da Cortina de Ferro. São livros que ele não teve tempo de
revisar. Se tivesse o tempo necessário, por exemplo, para analisar as Memórias do Cárcere,
certamente teria arrancado uma quantidade enorme de fatos. Sua função
era "dizer", simplesmente "dizer", a palavra mal empregada, mal
assentada no edifício do texto, comprometia qualquer obra do arquiteto.
Para escrever as Memórias,
Graça conta os fatos que sucederam nos anos de 1936 e 1937. Foi acusado
pelo Governo de Vargas de que era um conspirador, um agente vermelho a
serviço do comunismo. Todavia, eram apenas suspeições. Não havia provas
materiais contra o escritor. Ela assumia o papel de K. da obra O processo,
de Kafka. Existe uma acusação, mas aonde está o libelo material?
Acusado pelo aparelho estatal totalitário, o alagoano se ver diante de
personagens variadas. Percebe a ausência conexão entre os fatos e as
intenções revolucionárias dos presos políticos. Como fazer revolução em
país "cheio de beatos de Padim Cícero"? Ou como reunir a malta
sub-letrada de um país afundado na indigência intelectual? Graça fora
vitimado pela intrusão da burocracia varguista. O país estava mergulhado
num estado de exceção. Vargas flertava com Mussolini e com Hitler. O
Integralismo era um câncer social. O obscurantismo crescia por todos os
lados. Graça falava em "fascismo tupinambá". Como se defender? E num
erro de cálculo, os comunistas haviam tentado iniciar um levante
revolucionário em 1935. Eram razões mais que óbvias para a burguesia do
país referendar a perseguição. Sujeitos como Graciliano Ramos pareciam
oferecer perigo. Mas que perigo? O próprio Graça ria do senso
revolucionário tupiniquim e das momices do governo. Nossa anemia
intelectual nos impelia a construções extemporâneas, sem que houvesse
considerações da sociedade em que se vivia. Em Alagoas, ele encontrou em
um muro: "Índios, uni-vos!". A afirmação incongruente alargava a
indigência teórica dos revolucionários de nossa terra.
Carlos Vereza no papel de Graciliano. Memórias do Cárcere, filme de Nelson Pereira dos Santos |
Graça
ficou preso em um quartel no Recife. Depois, foi embarcado em um navio.
Costeou o Nordeste e, finalmente, chegou ao Rio de Janeiro - Ilha
Grande e Colônia Correcional. A latrina que se constituiu o porão do
navio era um amostra de como a burocracia totalitária e insensível de
Vargas tratava os prisioneiros políticos, em sua maioria sujeitos que
haviam ingressado em uma esparrela revolucionária. Eram colocados em um
submundo. Tornavam-se como bichos, jogados de um lado para outro. Sendo
ruídos pelos piolhos, percevejos e pela mucurana. Alimentado-se mal. Sem
um lugar satisfatório para dormir, Graça definha. Emagrece. Fuma
desvairadamente. Observa a fauna humana. Seus ritos. Caprichos. A
contradição nos gestos. Os muros erguidos. Os chefetes legitimados por
uma farda. Criaturas inexpressivas. Insetos sociais, que se agigantavam
quando escudados pela força autoritária do Estado. Mas, às vezes, a
cordialidade aparecia. E esmaecia por trás das nuvens dos interesses.
Como o próprio Graça vai dizer: "Éramos cupins dentro do edifício
burguês".
O livro é dividido em quatro partes. Cada uma das partes tem o propósito de narrar um lugar em que esteve o autor de Vidas Secas.
Quando penso em experiência em prisões, não devo deixar de citar três
livros imprescindíveis para mim: "Memórias do Cárcere", "Recordação da
Casa dos mortos", de Dostoiévski e "Os contos de Kolimá", de Varlam
Chalámov. São retratos de como a esterilidade de pensamento político
pode transformar seres humanos em resíduos, em peças de uma engrenagem
que desumaniza, que espolia a dignidade necessária que nos coloca numa
posição que, nós humanos, julgamos especial. A exploração do homem pelo
homem é um dos fatores que levam ao emprego dos mais variados tipos de
violência.
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