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Cena do filme "A hora da estrela" (1985), de Suzana Amaral |
“...ela era café frio”.
“Você sabe mesmo é
chover”
Realizei a terceira leitura –
embasbacado – de “A hora da estrela”, o último romance de Clarice Lispector.
Nessa última leitura, prestei atenção ao movimento e ao efeito das palavras e,
sem qualquer apelo hiperbólico, resta a impressão de que se trata de um texto
que beira à perfeição. Enquanto prestava atenção à condução da história pelo
narrador Rodrigo S.M., fazia a seguinte pergunta: afinal, o que tinha Macábea?
"A hora da estrela" foi publicada em 1977, mesmo ano em
que morreu a autora. Talvez, seja seu romance de leitura mais fácil. Todavia, a
palavra “fácil” nunca quer dizer “tranquilo” em Clarice. A autora emprega o
fluxo de consciência, como técnica tão costumeira como, por exemplo, em “A
Paixão segundo G.H.”, o que torna o texto em uma massa psicológica densa. Há
descrições singulares que misturam o mundo simples de Macábea à voz emulante e
meticulosa do narrador.
O texto prescindiria de um
narrador, talvez. Rodrigo S.M. é um alter
ego de Clarice, certamente. Todavia, perderia em análise; perderia em
força, pois o narrador estabelece um diálogo tácito com o leitor. Ele faz a
promessa de que vai entregar algo. A maneira como que ele despe Macábea e
coloca um facho de luminosidade na modesta existência da personagem é um
movimento de crueldade. Como Macábea há milhões de pessoas que passam pelo
mundo sem atentar para o ato complexo que é existir. A personagem ignora os
elementos mais complicados da vida. Existe uma beatitude em sua ignorância. Ela
não consegue observar o trânsito caótico em sua vida. Sua avassaladora
ignorância sobre si e sobre o mundo a torna em um ser caricato.
O que tinha Macábea? Ao tentar
responder essa pergunta, é inevitável não pensar no estranho paradoxo presente
no título da obra. Por que “estrela”, se não havia nenhum brilho em Macábea? A
alagoana era “café frio”; “era capim”. Não havia qualidades ou vantagens a
serem destacadas; uma nesga de relevo em sua existência achatada; uma dignidade
a ser ostentada. Tanto física quanto existencialmente, o que se percebe na
personagem é um conteúdo opaco, sem força e com potência insignificante.
O que tinha Macábea? Em certa
altura da narrativa, encontra-se essa pérola que revela a ignorância de si e a
ignorância do mundo presentes na personagem: “Quero afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir
vivendo à toa. Se tivesse a tolice de perguntar “quem sou eu?” cairia
estatelada e em cheio no chão”. Ou esta: “Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o
melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando”.
“A hora da estrela” é a reflexão
sobre o insignificante. Enquanto os outros personagens – Olímpico de Jesus e
Glória – ostentam (até mesmo no nome) uma grandiloquência no modo de ser e no
nome, Macábea é pequena e indefesa. Olímpico possui um nome que ostenta força,
além do sobrenome que sugere uma ideia de redenção, de sacralidade. Glória
exprime a semântica do triunfo. Enquanto Macábea sugere o nome dos Macabeus,
povo que conseguiu criar uma resistência contra o domínio de Antíoco IV, no
século II antes da era comum, e acabou sendo conquistado de forma tácita pelos
romanos. Há imensas ironias e sugestões sutis na obra. Nada é gratuito.
Macábea representa aquele tipo
de indivíduo que passa pelo mundo sem que seja dada conta da sua vida. A ignorância
de si impõe o anonimato dela para com ela e para com o mundo. Seu mundo
apoucado, colocado em um território cinzento sem qualquer fato expressivo, é a
síntese da miséria e da ignorância. Analisar a vida da personagem sugere imediatamente
um quadro de advertência, pois é preciso ter uma noção mínima sobre aquilo que
somos. Nietzsche em “Para além do bem e do mal” afirma que “Quando adestramos a
nossa consciência, ela beija-nos ao mesmo tempo que nos morde”. Macábea,
coitada, não percebia nem o adestramento nem a mordida.