terça-feira, março 26, 2024

"A hora da estrela", de Clarice Lispector, algumas palavras

Cena do filme "A hora da estrela" (1985), de Suzana Amaral

 

“...ela era café frio”.

“Você sabe mesmo é chover”

 

                Realizei a terceira leitura – embasbacado – de “A hora da estrela”, o último romance de Clarice Lispector. Nessa última leitura, prestei atenção ao movimento e ao efeito das palavras e, sem qualquer apelo hiperbólico, resta a impressão de que se trata de um texto que beira à perfeição. Enquanto prestava atenção à condução da história pelo narrador Rodrigo S.M., fazia a seguinte pergunta: afinal, o que tinha Macábea?

                “A hora da estrela” é o último livro escrito por Clarice Lispector. A obra foi publicada em 1977, mesmo ano em que morreu a autora. Talvez, seja seu romance e leitura mais fácil. Todavia, a palavra “fácil” nunca quer dizer “tranquilo” em Clarice. A autora emprega o fluxo de consciência, como técnica tão costumeira como, por exemplo, em “A Paixão segundo G.H.”, o que torna o texto em uma massa psicológica densa. Há descrições singulares que misturam o mundo simples de Macábea à voz emulante e meticulosa do narrador.

                O texto prescindiria de um narrador, talvez. Rodrigo S.M. é um alter ego de Clarice, certamente. Todavia, perderia em análise; perderia em força, pois o narrador estabelece um diálogo tácito com o leitor. Ele faz a promessa de que vai entregar algo. A maneira como que ele despe Macábea e coloca um facho de luminosidade na modesta existência da personagem é um movimento de crueldade. Como Macábea há milhões de pessoas que passam pelo mundo sem atentar para o ato complexo que é existir. A personagem ignora os elementos mais complicados da vida. Existe uma beatitude em sua ignorância. Ela não consegue observar o trânsito caótico em sua vida. Sua avassaladora ignorância sobre si e sobre o mundo a torna em um ser caricato.  

                O que tinha Macábea? Ao tentar responder essa pergunta, é inevitável não pensar no estranho paradoxo presente no título da obra. Por que “estrela”, se não havia nenhum brilho em Macábea? A alagoana era “café frio”; “era capim”. Não havia qualidades ou vantagens a serem destacadas; uma nesga de relevo em sua existência achatada; uma dignidade a ser ostentada. Tanto física quanto existencialmente, o que se percebe na personagem é um conteúdo opaco, sem força e com potência insignificante.

                O que tinha Macábea? Em certa altura da narrativa, encontra-se essa pérola que revela a ignorância de si e a ignorância do mundo presentes na personagem: “Quero afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de perguntar “quem sou eu?” cairia estatelada e em cheio no chão”. Ou esta: “Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando”.

                “A hora da estrela” é a reflexão sobre o insignificante. Enquanto os outros personagens – Olímpico de Jesus e Glória – ostentam (até mesmo no nome) uma grandiloquência no modo de ser e no nome, Macábea é pequena e indefesa. Olímpico possui um nome que ostenta força, além do sobrenome que sugere uma ideia de redenção, de sacralidade. Glória exprime a semântica do triunfo. Enquanto Macábea sugere o nome dos Macabeus, povo que conseguiu criar uma resistência contra o domínio de Antíoco IV, no século II antes da era comum, e acabou sendo conquistado de forma tácita pelos romanos. Há imensas ironias e sugestões sutis na obra. Nada é gratuito.

                Macábea representa aquele tipo de indivíduo que passa pelo mundo sem que seja dada conta da sua vida. A ignorância de si impõe o anonimato dela para com ela e para com o mundo. Seu mundo apoucado, colocado em um território cinzento sem qualquer fato expressivo, é a síntese da miséria e da ignorância. Analisar a vida da personagem sugere imediatamente um quadro de advertência, pois é preciso ter uma noção mínima sobre aquilo que somos. Nietzsche em “Para além do bem e do mal” afirma que “Quando adestramos a nossa consciência, ela beija-nos ao mesmo tempo que nos morde”. Macábea, coitada, não percebia nem o adestramento nem a mordida.

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