terça-feira, junho 25, 2024

"Riacho Doce", mais um livro de José Lins do Rego

 


                Li um dos poucos romances de José Lins do Rego que ainda não conhecia. Faltam ainda Eurídice e Água Mãe.                 Claro, existem aqueles textos esparsos do espólio do escritor – Bota de sete léguas, Histórias da Velha Totônia, as crônicas etc., todavia, dos textos mais robustos, li dessa vez Riacho Doce, de 1939. 

                A produção de José do Rego segue um fluxo intenso. Impressiona que nos primeiros anos da década de 30, ele escrevesse – praticamente - um livro por ano. São obras com uma narrativa frenética, inebriante, viciante. Foi desse fluxo criativo que surgiram, por exemplo, os romances do conhecido ciclo da cana-de-açúcar. São ficções de alta calibragem, obras cuja ressonância memorialística é incontrastável. Nascido no engenho do Pilar, na região açucareira, herdeiro da aristocracia canavieira paraibana, José Lins foi criado pela família paterna, já que perdeu a mãe ainda muito novo. Essa experiência é contada com traços de alta tensão emocional na obra “Meus verdes anos”.

                José Lins não se afasta daquilo que ele foi. Seus textos são altamente descritivos. Os cinco livros do seu famoso “ciclo da cana-de-açúcar” caracterizam a passagem do tempo. Em “Menino de engenho” há a demonstração do paraíso. A história acontece no engenho Santa Rosa. Em “Doidinho”, o segundo livro da série, o personagem principal – Carlos de Melo – vai estudar em um liceu. Nesta obra, repleta de fragrâncias de “O ateneu”, de Raul Pompéia, José Lins, descreve a saída do paraíso. Em “Bangüe, Carlos de Melo retorna ao Santa Rosa. Tanto o engenho quanto ele estão mudados. Ele se percebe incapaz de governar aquele mundo. Percebe-se um movimento decadentista que começa a tomar conta do mundo verde do Santa Rosa. Em “O moleque Ricardo”, percebe-se uma inflexão, já que a história deixa o eixo paraibano e acontece nos subúrbios do Recife. Curiosamente, José Lins centra a sua obra nos locais por onde passou – Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Rio de Janeiro. Esteve rapidamente no interior de Minas Gerais como promotor, mas não ficcionalizou nenhuma história.

                O último livro do ciclo é “Usina”, cujo título prenuncia a instituição que matou os bangues. A usina indicava uma mudança não somente do modo de produção, mas de um estilo de viver centrado na casa-grande. Saía o senhor de engenho, uma espécie de dono de feudo, capaz de mandar e desmandar na vida de todos aqueles que viviam sob o seu domínio e passa existir o usineiro, um capitalista pragmático, pouco preocupado com as vicissitudes da vida senhorial de outrora. Observa-se que a obra de José Lins é repleta de um saudosismo de um certo estilo de vida. Ele faz um inventário antropológico de uma maneira de ser, de um estilo de vida emanado da casa-grande. Ele descreve a derrocada daquele modo de ser, mas, no fundo, é como se estivesse a lamentar as mudanças que aconteceram.

                Quando escolhi “Riacho Doce”, no início do ano, enchi-me de expectativas. Sabia que encontraria uma literatura carregada de emoções à flor da pele. José Lins é daqueles escritores que colocam a narrativa em um plano bastante elevado e ela permanece no alto sem perder seu encanto, sua força, a profusa carga de emoções. No seu conhecido “Ciclo da cana-de-açúcar”, havia um largo terreno para que ele pudesse espraiar o seu olhar. Havia memórias das mais variadas. Ele narrou – em parte – aquilo que ele viveu, por isso o tom nostálgico. O realismo de sua literatura é contestador.

                Foi munido dessa expectativa que fui para o livro. O que Zé Lins – como era conhecido pelos amigos – diria? Teria fôlego para sair da geografia dos engenhos? Um ano antes (1938), ele escrevera “Pedra bonita”, cuja escrita dura, bruta, escancara – por meio de um realismo quase mágico – a superstição e a religiosidade do povo nordestino. Os episódios quase bíblicos da narrativa frenética denunciam eventos quase escatológicos da crença do povo sofrido.

                “Riacho Doce”, por sua vez, é como uma ópera em três atos. Dois terços da história se passa em Alagoas e a primeira metade numa improvável Suécia.  José Lins nunca esteve na Suécia. Os poderes da literatura extrapolam, certamente, as convenções do precisar “conhecer” para descrever, ainda mais em se tratando do escritor paraibano. Zé Lins, em sua produção, narrou o que viu. Esse fato é bastante acentuado na produção literária do escritor paraibano. José Lins é um escritor eminentemente memorialístico. A Suécia aparece decantada. É como se ele quisesse provar para os seus críticos que ele era capaz de criar sem ver. Observa-se que o escritor, ao contrário das obras do “Ciclo”, procura, cuidadosamente, focar a sua atenção nos dilemas das personagens.

José Lins do Rego, o autor prolífico

                Na primeira parte do romance, o narrador descreve a sofrida história de Edna, moradora de um longínquo vilarejo sueco. Sua existência é grávida de dissabores, até conhecer a professora Ester, que a trata com desvelo e carinho. Mais tarde, ela conhece Carlos, um engenheiro. Mesmo sem amor, decide casar com Carlos. Edna enxerga nisso uma possibilidade de mudar a sua trajetória e manter uma distância necessária ´dos parentes, como que para esquecer o próprio passado. Carlos é convidado para perfurar poços de petróleo em uma inóspita região brasileira. São essas as circunstâncias que trazem o casal para uma região ignorada de um país ignoto.

                A segunda parte do romance descreve a chegada do casal a Riacho Doce, um local rústico, mas de natureza exuberante. Edna é arrebatada pela natureza e pelas feições tão destoantes daquelas com as quais convivera até aquele momento de sua vida. Aos poucos, afasta-se do seu marido Carlos. Realiza longas, demoradas, repetitivos banhos na praia. Aquela ligação telúrica com Riacho Doce parece sugerir um exercício de purificação. Edna deseja viver uma tropicalização de sua própria existência. É nesse intervalo de transformação que ela conhece o mestiço Nô.

                Na terceira parte da obra, a ênfase é dada à paixão avassaladora entre Edna e Nô. Os dois experimentam intensamente os eflúvios febris da paixão. Ignoram as convenções da pequena Riacho Doce. O companheiro de Edna toma conhecimento. Nada parece impedir a consecução daquele enlace clandestino. Todavia, é nesse ponto da narrativa que percebemos a mão de José Lins evocando tão bem uma das suas qualidades – ou seja, inserir o elemento supersticioso, miraculoso, mágico da cultura nordestina. Aninha, a avó de Nô, atua como uma força que captura a mente de Nô. Aos olhos de Aninha, Edna era uma mensageira do mal. A continuação da relação entre os dois era amaldiçoada. Eventos terríveis poderiam acontecer, caso Nô, teimosamente, insistisse em conduzir aquela relação.   Esse fato perturba o neto. O que acontece a partir desse evento é repleto da força narrativa tão característica do escritor. Ele parece retomar força e a densidade de “Bangue” e “Usina”, os dois melhores livros do “Ciclo” – em minha humilde concepção.

A próxima frase ou o próximo período em Zé Lins nunca esgota o anterior, todavia se renova no próximo. Possui, incrivelmente, a pujança dialética do fôlego que não se perde. É essa capacidade que faz do seu estilo algo tão característico. Zé Lins sabia como ninguém criar uma boa história. Conseguia, por meio de um estilo capaz de aproximar o texto escrito da enunciação oral, sustentar um fluxo narrativo que segurava o leitor. Riacho Doce possui essas características. É um romance exitoso. Há todo aquele sabor idílico das paisagens estruturadas em uma ontologia tão característica, mas que é permeada por um realismo trágico. Nota-se em José Lins que a história atua como uma força que faz desequilibrar a vontade das personagens. Ou seja, a realidade descontrói as ambições das personagens, enquanto se convive com aquilo que poderia ter sido.

Após ter lido “Riacho Doce”, no próximo ano, leremos “Eurídice”.  


terça-feira, junho 11, 2024

Anton Bruckner e a imensidão

 


                Em 2024, o mundo e o Universo comemorarão os duzentos anos do nascimento do compositor austríaco Anton Bruckner. Falar o nome de Bruckner por si só já é um grande acontecimento. A vida do compositor foi repleta de curiosas ocorrências. Há relatos que o descrevem como uma pessoa ingênua e insegura; dono de uma personalidade com aspectos infantilizados. Oriundo do interior da Áustria, Bruckner era o que convencionamos chamar de caipira, de homem provinciano. Possuía hábitos incomuns. Alimentava superstições. Quem o observava – e muitos foram os seus detratores – não conseguia ligar as suas densas reflexões em forma de música, ao homem simples, de aspectos bonachões.

                Embora com uma personalidade tão excêntrica, Bruckner compôs obras que traduzem o infinito. Foi um compositor eminentemente religioso. Compôs sinfonias, missas, motetos, etc. Suas missas estão entre as obras mais bonitas para o gênero. O Seu Te Deum impressiona pelo rigor e pela grandiloquência barroca de sua estrutura.  Suas obras possuem um forte aroma espiritual.

Bruckner era um católico devoto. Alguém que levava a sério as exigências de seu credo. Como era um homem inseguro, precisava ter convicções firmes e orientadas. O compositor pode ser colocado na tradição de Bach, de Palestrina, de Victória, de Ockhegem, de Lassus ou de Josquim des Près, no que diz respeito à forte evocação religiosa de sua obra. Nota-se que Bruckner elevou o conceito de sinfonia e, por isso, é considerado um dos maiores compositores desse gênero de todos os tempos.

                A sinfonia em Bruckner é uma forma de acessar a eternidade ou de trazer o transcendente à Terra. Ela passa a expressar grandes reflexões como já havia feito Beethoven, ou como, em sua época, fazia Brahms; e, mais tarde, faria Mahler ou Shostakovich, reputados como grandes sinfonistas. A força de suas reflexões suscita os mais elevados sentimentos, as mais ideais reflexões. Alguém afirmou que as sinfonias do compositor são enormes catedrais barrocas. São ricas em detalhes, repletas de minudências; de delicados pormenores que impressionam o observador atento. Nunca se apreende todos os detalhes numa primeira observação. É preciso parar, ouvir mais de uma vez; observar os contrastes; a força simbólica das evocações; as metáforas transcendentes que provocam uma sensação de pequenez diante do imenso, do grandioso. Esse aspecto de suas sinfonias provocou muitas incompreensões no período em que foram escritas. Seus críticos eram implacáveis, pois não entendiam os efeitos estéticos do compositor. Afirmavam que os trabalhos eram longos, cansativos e sem intencionalidade. 

                Em certo momento da minha vida, já tive dificuldades com a música do compositor austríaco. Todavia, entendo que não estava à altura dos efeitos caudalosos de suas reflexões. Se hoje consigo fruir a beleza de suas composições é por que passei por um processo de evolução. Hoje, eu percebo o quão prodigioso é ter a oportunidade de ouvir uma das suas sinfonias. Para o ouvinte pouco afeito à linguagem do compositor, não é fácil apreender numa só audição os intricados detalhes de suas galáxias em forma de sinfonia. Bruckner só se torna prazeroso a partir do momento que ouvimos outros compositores e, a partir daí, procuramo-lo. O compositor não é admitido na primeira audição para ouvintes iniciantes. 

Todavia, quando se descobre a beleza de sua música, é como se todos os mistérios da vida fossem explicados, simplificados, exatificados; como se todas as feiuras e misérias morais fossem abolidas; todas as injustiças e ignorâncias fossem justificadas.

                Nietzsche disse certa vez que Bizet o tornava em “um melhor filósofo”. O filósofo alemão mencionava isso quando escutava a ópera “Carmen” do compositor francês. Eu, seguindo a mesma lógica, a mesma percepção de Nietzsche, posso afirmar (sem nenhuma pretensão, claro) que Bruckner me torna um melhor ser humano. O compositor consegue abrir para mim dimensões intraduzíveis da beleza que abarca a existência como um todo. Bruckner é capaz de beatificar a vida; de torná-la mais suscetível ao espírito, à transcendência, ao senso do que é sublime.

Abaixo, um vídeo em espanhol, que fala sobre o aspecto sublime e metafísico da música de Bruckner: