terça-feira, julho 30, 2024

"Esaú e Jacó", de Machado de Assis - algumas observações


“Paulo gostava mais de conversa que de piano; Flora conversava. Pedro ia mais com piano que com a conversa, Flora tocava. Ou então fazia ambas as coisas, e tocava falando, soltava a rédea aos dedos e à língua”.

Capítulo XXXV

“Todos os contrastes estão no homem”.

Capítulo XXXV

Terminada a releitura de “Esaú e Jacó”, restou a impressão de que essa é uma das obras que melhor desvelam o seu autor. Revela um escritor maduro, que oscila entre a sátira, o niilismo e um estoicismo recolhido, personificado na pessoa do personagem do Conselheiro Aires. Vale lembrar que o ataráxico Aires seria o personagem principal que levaria o nome do último romance escrito por Machado – “Memorial de Aires”. No de caso de “Esaú e Jacó”, o escrito emprega o pessimismo e o faz por meio daquilo que ele sabia fazer melhor – a ironia fina, escorregadia, urdida em uma arquitetura textual primorosa. 

O livro foi publicado no ano de 1904, mesmo ano em que faleceu a sua inseparável companheira de 35 anos – Carolina Xavier. Machado contava com 65 anos de idade. Era um sujeito experimentado e habilidoso. Havia acumulado uma carreira de muito trabalho e consequente sucesso. Até aquele momento, escrevera obras que estão colocadas no panteão definitivo das produções literárias nacionais – “Memórias Póstumas”, “Dom Casmurro”, “Quincas Borba”, além de inauditos contos como “O alienista”, “A igreja do diabo”, “O espelho” e “A teoria do medalhão” entre outros. O seu realismo havia se escancarado, como lhe era comum; todavia, pode-se notar um ceticismo medido e mais acentuado em “Esaú e Jacó”.

As camadas de ironia do texto construído em torno dos antípodas Paulo e Pedro, encobrem, numa camada profunda, o entendimento de que a realidade pode ser diversa; que a história dos homens pode se alternar; que o elemento preponderante da realidade é a impermanência. Na parte final da obra, o narrador afirma: “Enfim, a morte chega, por muito que se demore, e arranca a pessoa ao pranto ou ao silêncio”. Em um dos capítulos da obra, naquelas incursões típicas do narrador que dialoga com o leitor (tão próprias de Machado de Assis), encontramos: “Não envelheças, amiga minha, por mais que os anos te convidem a deixar a primavera; quando muito aceita o estio”. Verifica-se que há uma acentuada preocupação com a questão do “tempo”. Ele aparece como motivo de reflexões ou envolve a vida dos personagens, traduzindo em acontecimentos em que se nota o quanto as personagens são atravessadas por esses efeitos. Ninguém pode se conduzir pela existência, simplesmente, ignorando-o; ou desconsiderando os seus sinais.

Machado de Assis

Fato curioso reside – de início – no nome da obra. Esaú e Jacó são os nomes dos dois filhos de Isaque – e este, filho de Abraão, de acordo com o texto bíblico. Os dois irmãos são criados de forma distinta. Esaú é caçador e tem a predileção do pai; Jacó, por sua vez, é benquisto pela sua mãe Rebeca. Os dois são concebidos em disputa. Esaú nasce primeiro, mas Jacó segura-lhe o calcanhar. O nome Jacó deriva de uma expressão hebraica que significa “ele agarra o calcanhar” e serve para designar uma pessoa de comportamento enganoso. Esaú é o mais velho e, portanto, todas as prerrogativas jurídicas da herança caíam sobre ele.  Jacó e sua mãe conseguiram usar um estratagema para fazer com que o irmão mais velho trocasse o direito de primogenitura por um prato de lentilha. Mais tarde, todos os efeitos da primogenitura recaem no colo de Jacó e ele passa a ser chamado de Israel. Esse confronto manifesto é explicado por meio de uma profecia dirigida a Rebeca pelo próprio Javé: “O mais velho servirá ao mais novo”. Os dois fundariam dois povos poderosos, mas essas nações seriam inimigas.

Apesar desse pano de fundo, os dois personagens de “Esaú e Jacó” não são chamados dessa forma. Um se chama Paulo e, outro, Pedro. Aquele era um entusiasta republicano e este um calejado monarquista. São completamente distintos em várias questões. Parecem existir para se confrontarem. Paulo e Pedro também são nomes extraídos Bíblia. Todavia, são nomes ligados à fundação do cristianismo. Enquanto Pedro estava ligado à Igreja de Jerusalém, Paulo é o apóstolo onipresente que estrutura um discurso e o leva aos confins do Império Romano. Ele é o pregador da diáspora, seu “ethos” é o da integração, do universalismo, da difusão plural, pois pregava aos romanos, gregos e demais povos da Antiguidade. Dominava a língua grega, a língua da cultura sistematizada da época. Além disso, é possível que soubesse o latim, a língua do Império e responsável por organizar as questões políticas e militares. Pedro, por sua vez, estava circunscrito ao ambiente judaico de Jerusalém e dominava, possivelmente, o aramaico. Nota-se, assim, que Machado genialmente une Antigo e Velho Testamento para construir o enredo da obra. Estica-se um fio que se apropria de elementos judaicos e elementos cristãos.

O Rio de Janeiro, em 1889, ano da Proclamação da República
 

Outro importante aspecto diz respeito ao momento histórico que a obra retrata. Nesse sentido, é um importante texto para estabelecer conexões com a fundação da chamada República Velha. Lima Barreto também a retrataria, mais tarde, em “O triste fim de Policarpo Quaresma”. Pedro torna-se médico; forma-se no Rio de Janeiro, sede da capital do Império. Paulo, torna-se advogado; estuda em São Paulo, um dos centros irradiadores das ideias republicanas. Vale mencionar que em São Paulo fica a prestigiada Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. Lá estudaram boa parte dos intelectuais que alimentaram a chama do republicanismo no final do século XIX.

A única questão que une os dois personagens é a paixão pela linda Flora, que ora se decide por um; ora se inclina para outro, sem tomar qualquer decisão. Observa-se que ela morre sem se decidir nem por um nem por outro. Em “Esaú e Jacó” o jogo muda, ganha novos contornos, pois a vida é repleta do efêmero. O ser humano também o é. Em tempos de mudanças, o que fica é a força da falta de estabilidade. Para algumas pessoas, essa característica gera inseguranças. No geral, as pessoas não lidam muito bem com a impermanência. Todavia, a realidade se constitui pela transformação, pela contradição.

A obra faz referência a alguns dos eventos que foram responsáveis pela organização política e econômica do país no século XX. Um dos principais eventos foi a Proclamação da República, arrancando o país da condição de Império, o último das Américas. Menciona-se ainda a Abolição da escravatura, um dos eventos que mudaria em definitivo a relação do capital com as forças produtivas. Além dessas questões, a mudança do Império para República deflagrou uma crise econômica denominada de Encilhamento. 

Sendo assim, observa-se que Machado se utiliza de personagens complexos para realizar uma análise das contradições existentes no ser humano, bem como refletir sobre os eventos políticos do seu tempo. Machado lança mão da ambiguidade para apontar que a vida pode ser conduzida por mares diversos. Tanto Paulo quanto Pedro são faces da mesma verdade, que é a vida. As indecisões presentes em Flora também fazem parte da existência. As paixões exacerbadas apenas fazem sofrer, pois como diz o próprio narrador “todos os contrastes estão no homem”.  

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