quarta-feira, outubro 22, 2025

"A alma encantadora das ruas", de João do Rio

 

"Se as ruas são entes vivos, as ruas pensam, têm ideias, filosofia e religião”.

João do Rio, in “A alma encantadora das ruas”.

 

                Durante certo tempo, alimentei um preconceito pueril, talvez, baseado em notícias propaladas pela mídia, de que o Rio de Janeiro era uma cidade caótica, babélica, sem quaisquer atrativos. Além disso, posso acrescentar que os atributos expansivos do carioca, causavam-me certa indisposição. Imaginava que o logro era o esporte favorito do carioca. Afirmava em minha aguda ignorância que o Rio de Janeiro seria o último lugar do país onde poria os pés. Meu radicalismo não permitia a admissibilidade de qualquer concessão.

                Em 2024, o que parecia impraticável acabou por se realizar. Passei cinco dias na cidade. Um tempo curto para averiguar, para flanar (uma francofilia muito usada por João do Rio) pela cidade. Fui a alguns locais importantes: Forte de Copacabana, Confeitaria Colombo, Museu do Amanhã, Pão de Açúcar, Cristo Redentor, à Academia Brasileira de Letras; caminhei pelo Centro histórico, lá tive a oportunidade de visitar o Gabinete Real de Leitura Português. Ainda ficou a sensação de que o Rio era uma cosmopólis, um local em que a história do país caminha ao seu lado; observa os seus passos. Em todos os bairros, há uma sensação de que uma personagem da cultura ou da política espreita você. As ruas e avenidas possuem nomes que fazem ecoar o passado como, por exemplo, o Bairro do Cosme Velho, local famoso por ter sido o bairro em que Machado de Assis viveu boa parte da sua vida; ou a famosa Rua do Ouvidor, um dos locais mais famosos e febricitantes das primeiras décadas do século XX. Ainda é possível encontrar a presença do Rio de Janeiro antigo na Rua do Ouvidor. Infelizmente, não fui até lá, apesar de ter me programado. O tempo foi insuficiente.

                Quando voltei do Rio, uma mutação havia se dado em mim – ainda bem. Os conceitos pequenos e apressados os quais eu possuía foram pulverizados pela certeza de que necessito voltar à cidade para uma nova incursão. Essa convicção se tornou mais patente após ler o indescritível “A alma encantadora das ruas”, de João do Rio. O livro reúne textos do autor sobre a cidade do Rio de Janeiro da primeira década do século XX. O Brasil era um país novo, governado por militares; monocultor, agrário, com uma população majoritariamente analfabeta; um país cuja fundação passava pela mistura de povos. O Brasil procurava se encontrar, modernizar-se. Afirmar a sua identidade. Daqui, olhava-se para a Europa, uma referência incontestável para as elites urbanas letradas. O próprio João do Rio era alvo dessa influência. O epíteto João do Rio, talvez, seja influência do nome “Jean de Paris”, que o escritor carioca encontrou em uma das suas viagens à capital francesa, tendo tomado de empréstimo o epíteto.

                O fato é que Paulo Barreto – o nome de batismo de João do Rio – era um indivíduo talentoso e que fez a sua fama no jornalismo.  Ele consolidou um estilo de jornalismo ambientado em locais, personagens do povo; em acontecimentos aparentemente banais. Seu estilo irônico em alguns momentos; realista ao extremo em outros, desenha as cores da cidade. Ele abre o texto do livro - crônica “A rua” -, com uma afirmação seca, direta, sem maneirismos, revelando o “amor” “absoluto” e “exagerado” que alimentava: “Eu amo a rua”. É assim, sem pudores, limpidamente, que ele declara, como se estivesse a justificar tudo o que vai ser lido nas 27 crônicas que povoam o livro.

                O escritor nasceu, em 1881, na cidade que tanto amou; morreu jovem, às vésperas de completar 40 anos de idade, em 1921. Caso tivesse vivido um pouco mais, teria testemunhado revoltas e a transformação da cidade. Antes mesmo que os intelectuais de 1922 lançassem seus manifestos, João do Rio já modernizava a prosa. O país com suas contradições estava presente em seus textos, pois João do Rio já era moderno antes dos modernistas. Luiz Antonio Simas afirma que “João do Rio é o escritor das encruzilhadas”. Ao afirmar isso, Simas chama a atenção para o fato de que os textos de João partem sempre de uma perspectiva da cidade que se vê e daquela que é ignorada, que fica em um plano secundário. E, talvez, nesse fato resida a maior qualidade dos seus textos: dar visibilidade àqueles fatos ignorados que constituem a cidade, a rua. Como ele dizia – “a rua tem alma”. A rua afirma o tempo todo; ela declara suas incongruências; perfila seus atores, seus exageros, suas vilanias, mas sua poesia também. “Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue...”

                João do Rio era um homem que “flanava” pela cidade. Para ele, só era possível se apropriar dos distúrbios mais comezinhos da rua, caso a alma que deseja entendê-la, materializasse as implicações necessárias desse verbo. Ele mesmo explica: “Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali na esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas mágicas , conversar com os cantores de modinha das alfurjas da Saúde, depois de ter ouvido dilettanti de casaca aplaudirem o maior tenor do Lírico numa ópera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um pintor afamado até a sua grande tela paga pelo Estado; é estar sem nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja”.

                O escritor começou cedo no jornalismo. Atuou por mais de vinte anos na profissão. Fundou o seu próprio jornal – A Pátria. Alcançou fama ainda em vida. Era bastante conhecido na cidade do Rio de Janeiro. Viajou mais de uma vez para a Europa. Vestia-se à maneira de um dândi. Era um Oscar Wilde tropical. Inclusive, chegou a traduzir obras do escritor inglês – a peça dramática do escritor Salomé é um exemplo. Essa aproximação com o estilo wildeiano alimentava polêmicas. Ele parecia ignorá-las. Para além disso, repousava o fato de ele ser homossexual – embora, de fato, nunca tenha assumido que o era. Tentou por duas vezes ingressar na Academia Brasileira de Letras – a primeira em 1907; tendo conseguido na segunda tentativa, em 1910.

                O livro “A alma encantadora das ruas” é um estudo etnográfico sobre o significado da rua. O livro é dividido em um movimento – (1) O que se vê na rua; (2) Três aspectos da miséria; e (3) Onde às vezes termina a rua. Para João do Rio, tudo se transforma em um texto que acaba por declarar o que é a cidade. Os tatuadores, as orações do povo; as pinturas e os dizeres da rua; as tabuletas que indicavam os endereços; a religiosidade do povo; os trabalhadores da estiva; os moradores de rua; as mulheres mendigas; as crianças que moravam nas ruas. Ele constrói uma visão bastante generosa a respeito dos seres inviabilizados no espaço social.

O escritor costumava visitar os espaços e instituições da cidade. Um famoso exemplo é a ida às prisões. Nesses espaços, ele procurava entender o que levava aqueles homens e mulheres a estarem naquele espaço. Ele observava: os crimes passionais; aqueles que ficavam nas galerias superiores; como era o dia de visita; como viviam as mulheres detentas.

O livro é necessário, pois nos permite a constituição de um olhar completamente novo para as cidades; ou seja, o espaço urbano em que vivemos. O Brasil do século XXI, é bem diferente do Brasil de João do Rio. As cidades se agigantaram. Todavia, mesmo com essas mudanças incontornáveis, as ruas possuem uma mística que suplanta o tempo. Ele mesmo afirma: “a rua é um fator da vida das cidades”. É sua face mais real; a artéria por onde corre a sua vida.

Para aprofundar meus conhecimentos sobre o autor carioca, comprei o livro “João do Rio – Vida, paixão e obra”, de João Carlos Rodrigues. A leitura já foi iniciada.


segunda-feira, outubro 06, 2025

Memórias... um documentário sobre o professor Carlos Mota

Professor Carlos Mota

Semana passada, descobri que Mário Bispo, um dos grandes professores que eu já tive, leva a sua filhinha à escola onde o meu filho estuda. Nesses encontros fortuitos, porém novidadeiros e que infundem na gente uma ponta de satisfeita felicidade, ele acabou me chamado lisonjeiramente de "meu poeta". Não me julguei digno do elogio. Desconversei. Chamou-me assim pelo fato de eu ter escrito um texto sobre o professor Carlos Mota

Ele afirmou que haviam feito um documentário sobre a vida do professor Carlos Mota, assassinado em 2008, no Lago Oeste, local onde morava. A morte do professor Carlos Mota provocou grande comoção por tudo aquilo que ele representou para a educação de sua comunidade. Foi morto por fazer uma pequena revolução que progredia em um movimento ondulante e que começava a ganhar contornos no local em que vivia. Carlos Mota era diretor de uma escola no Lago Oeste. Seu trabalho estava impactando a comunidade e causando um sintomático incômodo ao mundo do crime. Resultado: foi alvejado covardemente por alguém da região que estava se sentindo incomodado pela sua entusiasmada atuação.

Fui aluno de Carlos Mota e ainda guardo boas memórias. Estudei com ele - caso não esteja enganado - nos idos de 2007 ou 2008. Durante um semestre no curso de Letras, tive o privilégio de escutá-lo. Era um grande orador. Falava de forma apaixonada sobre vários temas. Todavia, era visível a sua paixão pela educação, por uma educação emancipadora, que transformasse a realidade e nos fizesse compreendê-la. 

Naquele semestre, tivemos o privilégio de ler coletivamente "Não espere pelo epitáfio", livro de reflexões instigantes do ótimo Mário Sérgio Cortela. Os textos curtos, mas com instigantes reflexões filosóficas, iniciavam os trabalhos pedagógicos. Era como se estivéssemos para iniciar um grande banquete e aquelas leituras eram as entradas que alargavam ainda mais a nossa fome. Carlos de um tablado que se elevava alguns centímetros do chão, gesticulava, liberava uma sintaxe afiada, cortante, inspirada. Dizem os estudiosos que o nosso cérebro retém apenas aquilo que nos marca sobremaneira. Eu não teria como apagar aquelas lembranças. Em sala de aula, tento repetir essa mesma prática: sempre começo as aulas da sexta-feira com uma leitura-reflexão a respeito de um poema - Fernando Pessoa, Carlos Drummond, Cecília Meireles, Adélia Prado, Manoel de Barros, João Cabral de Melo neto etc. É uma forma de aprender com a beleza, com a singeleza dos versos, da poesia que se encontra em algum apenas esperando ser apreciada. O fato de fazer isso é uma reminiscência involuntária daquilo que aprendi com Carlos Mota. 

Lembro-me de que ele convidou os alunos para realizar uma visita ao local onde morava. Sua chácara ele chamava de "Brilho da Lua". Foi uma noite extraordinária. Imensamente generoso, ele abriu os portões de sua chácara para a turma inteira. Alguns levaram barracas para acampar. Era uma noite fria e brumosa. Naquele dia, teve música, dança, falas, risadas desmedidas, discursos, aprofundamento de ideias políticas. Recordo-me que, no outro dia, ele de sua casa e foi até onde os bravos alunos dormiam. Aproximou-se com um largo sorriso - uma das suas marcas. Franqueou-nos a sua cozinha. Não imagino que outro professor teria coragem de fazer isso. Pois Carlos Mota, alguém imensamente comprometido com a formação de cada uma nós foi capaz de fazê-lo.  

Olhando, hoje, à distância, essa postura apaixonada, capaz de incentivar, de provocar afetos, recordo os versos de Erasmo Carlos: "Gente certa é gente aberta". Carlos viveu as implicações desses versos. Era a pessoa certa para os grandes gestos, para as grandes e largas aberturas. Sua vida deu certo, pois ele não se fechou; abriu-se generosamente para ser com as pessoas com as quais encontrou - principalmente, seus alunos e as pessoas humildes. Era alguém com um grande potencial. Estava sempre aberto para as grandes ideias. Suas reflexões sempre promoviam a boa política, a abertura para a generosidade, para as ideais humanizadores. Abriam portas para realidades novas; para mundos anteriormente inacessíveis aos olhos acostumados ao comum, ao banal. Era, por isso, que ele era tão atraente. 

Mário Bispo disse que o filho do professor Carlos Mota produziu um documentário sobre o pai; que no processo de procurar informações sobre pai, leu o texto que escrevi lá em 2008. Fiquei um pouco atordoado por saber que havia muitas imperfeições de estilo e uma abundante imperícia gramatical naquilo que escrevi. 

Revisitei o texto; realizei algumas modificações para que ficasse mais palatável. 

Abaixo, o documentário produzido pelo jornalista Otávio Augusto Pereira Mota, filho de Carlos Mota.