quarta-feira, dezembro 30, 2009

A arquitetura do medo


Há alguns dias fiz alguns comentários sobre a cidade. A paisagem das cidades foi tomada por uma gama complexa de eventos. Os espaços urbanos modernos tornaram-se em abrigos de caoticidade, medo, violência e toda sorte de especulação. Diferente do passado, a maioria da população mundial vive nos grandes centros ou em torno desses mesmos centros. Isso permite o surgimento de fenômenos físicos e psicológicos que podem ser confirmados cada vez que saímos à rua ou ligamos a televisão, lemos um jornal ou acessamos a rede.

O espaço urbano é uma selva hostil. Essa geografia de pedra, cimento e vigas de aço é lugar de fomentação da insegurança. No inconsciente dos homens urbanos mora a paranóia e a sensação de perecimento. Isso explica o alastramento da mania de segurança que tomou tanto pobres como ricos. Segundo, o excelente texto do escritor Marcelo Rezende[1], a indústria da segurança somente no ano de 2007 teve lucro de aproximadamente 15 bilhões de reais. A isso forma-se um exército impressionante de mais de 600 mil seguranças privados (regularmente cadastrados) – sem mencionar os clandestinos. Mas uma pergunta nos surge: O que tem fomentado esse medo crescente? E outra: medo de quem ou do quê?

Analisando estes espaços não se deve deixar de refletir o que habita a alma do homem citadino. Está, por exemplo, num shopping confere segurança. Estes espaços foram feitos para produzirem uma sensação hedonista de bem-estar e sofisticação. Tanto é assim que a classe média possuidora de dinheiro, não deixa seus veículos automotores nos estacionamentos externos desses espaços pós-modernos. Os seguranças, as câmeras, a parafernália eletrônica transmite à burguesia egocêntrica a sensação de proteção, resguardo. O mundo de fora é hostil. Habitado por mendigos, crianças de ruas, pedintes. Todas essas criaturas são nocivas, perigosas. Os vidros dos carros são blindados. A película escura impede a visualização de quem está do lado de dentro. A rua tornou-se um espaço para o medo. A aproximação de alguém que não conhecemos confere medo, desconfiança e taquicardia.

A mídia é responsável pelo agravamento dessa sensação de medo. O poder do imagético na pós-modernidade cria uma confusão nas mentes. Geralmente, somos treinados para acreditar que as imagens virtualmente manipuladas são o real. Os filmes, novelas, seriados, noticiários são conduzidos de tal modo que já não sabe o que é real e não é. No fundo se se perguntasse a alguém que saiu de um cinema se aquilo que ele assistiu é real ou fictício, obviamente que ele responderia com objetividade que se trata de uma idéia criada, que faz parte do faz de que conta, porque real é o mundo onde ele vive. Mas no fundo, analisando com mais profundidade as implicações do estreitamento do real e do irreal, o que a indústria da imagem fez foi criar a idéia de que real e irreal são a mesma coisa. Júlio Arbex e Cláudio J. Tognoli, no livro Mundo Pós-Moderno escreve algo que elucida bem essa relação estreita entre o real e o virtual: “As novas tecnologias de realidade virtual já permitem que as pessoas, literalmente, entrem no computador para interagir com os atores colocados em cena. Assim, usando um capacete criador de realidade virtual, eu entro no filme. Luto com ‘o bandido’, transo com alguém ou visito um museu, percorrendo todos os seus corredores, visitando todas as suas galerias. Se, além do capacete, eu usar luvas táteis que transmitam impulsos ao cérebro através dos terminais nervosos de meus dedos, poderei então tocar e, provavelmente, até sentir o cheiro das coisas que estiver vendo. Fica abolida qualquer distinção entre realidade e fantasia, qualquer separação entre um mundo ficticiamente criado e o mundo empírico que experimento no meu cotidiano”[2]. Assim, as imagens virtualmente produzidas passam a preponderar sobre a realidade. O homem moderno já não identifica involuntariamente esses efeitos. A fronteira que delimita é tênue, quase inexistente.

A imagem seduz. Produz efeitos extraordinários. Direciona os sentidos. Congela sentenças. E forma opiniões. É possível manipular o público pelo modo como se posiciona uma câmera de televisão. Esse episódio se deu recentemente na História da Venezuela. Em A Revolução Não Será Televisionada, os irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Briain filmaram como se manipula por meio da imagem. Já não refletimos sobre o que é transmitido. Na maior parte do tempo assimilamos as “as verdades das imagens” sem julgá-las, exercermos um confrontamento direto. Arbex e Tognoli afirmam que “tudo pode ser transmitido pela televisão. Em princípio qualquer assunto é matéria televisiva. Da Guerra do Golfo ao jovem que matou a família com requintes de crueldade, do jogo de futebol a um programa de auditório que promove encontro entre pessoas interessadas em namorar. Não há assunto proibido, não há restrições que resistam à programação diária. Todos os âmbitos da vida são ‘cobertos’ pela televisão, qualquer espaço tornou-se um espaço de representação diante das câmaras. Todas as chagas são expostas, todos os dramas são explorados, tudo é devorado pela curiosidade voraz dos telespectadores”[3].

Ou seja, um dos principais responsáveis pela propagação da idéia de insegurança á a própria mídia com suas imagens que ocultam, sinalizam uma espécie de “violência ideal”. As informações veiculadas pela mídia com relação ao surto de violência que toma os grandes centros gera consequentemente um sensacionalismo sobre a insegurança. De modo que a presença de uma câmera de segurança produz uma sensação de conforto. O fato de estarmos diante da polícia gera uma impressão de proteção – mesmo que não estejamos em perigo. A mídia institucionalizou uma espécie de propaganda da violência. Hélio Bicudo aborda essa problemática da mídia em torno do tema violência e diz que “na tevê, as encenações usam os sentimentos daqueles que tiveram violados os seus interesses, abusando das lágrimas de crianças oprimidas; ou então, recorrem aos debates ao vivo, sempre oportunisticamente montados. Nada visa esclarecer ou conscientizar. Tudo procura, com sensacionalismo , propagandear a violência e enfatizar a necessidade de soluções duras, como a inserção na legislação penal de novos tipos criminais, reclusões perpétuas ou mesmo a pena de morte”[4]. O que se verifica com isso é que a própria mídia promove uma insegurança na população dos grandes centros e faz aumentar o delírio persecutório.

Essa condição fez aumentar o número de condomínios. Os condomínios são uma versão moderna dos feudos medievais. Cercados por muros altos, com cercas eletrificadas, fossos. Câmeras que filmam diuturnamente; a guarita com o segurança, transporta o espetáculo medieval dos castelos para a modernidade. A violência, o combate físico, era a forma como os enfrentamentos se davam na Idade Média. Espreita-se, assim, um inimigo invisível, que parece que já estamos preparados para ele. Ou seja, inseriu-se na mente moderna a idéia da agressão cotidiana constante. Resguarda-se das inconveniências – dos pedintes, dos menores abandonados, dos vendedores ambulantes, dos propagandistas. Todos eles são elementos inoportunos à burguesia. Tanto os mais ricos como os mais pobres preocupam-se com a violência. “Há muito de tecnologia e organização (as grades nas janelas com um floreio, um enfeite, se parecem com objetos de decoração), mas também a mais assumida gambiarra. Você pode comprar uma câmera de segurança vazia, sem nada dentro, apenas a casca, e instalar em sua casa”, diz Marcelo Rezende.

Segundo o mesmo Marcelo, 110 famílias já construíram bunkers que permitem viver por aproximadamente 30 dias sem qualquer contato com o mundo. Já estão preparados para uma possível guerra nuclear ou a terceira guerra mundial. O preço desses locais subterrâneos varia de R$ 100 mil reais a R$ 2 milhões.

O que de fato deve ser considerado em torno dessa problemática urbana é o medo do medo da violência. O medo, a expectativa da violência tornou-se tão séria como a própria violência. Por isso, falei anteriormente em um tipo de violência ideal. Na verdade, esse fenômeno da sensação da violência, denuncia outros medos; fobias no que diz respeito a mudanças econômicas, sociais. É uma blindagem contra o mundo. Contra a possibilidade concreta de mudança. É um processo de estranhamento do outro. Um medo constante do que outro pode fazer, promover, é uma tendência negativa do homem moderno. Vê-se o outro como um potencial perigo. Há uma tentativa de fuga da relação. Nuca se foi tão sozinho como dentro da arquitetura de pedra das cidades. Os homens estão sós e assustados, porque cada um está consigo mesmo numa atomização sem fim.

A arquitetura das cidades revela a doença que mora na alma dos homens. As gaiolas de pedra e de ferro paralisaram o mundo e o vestiu de medo, de imagens feias, assustadoras; promotoras de pânico e pesadelos. Andar pelas cidades pode atiçar suspeições em torno de conspirações invisíveis. É preciso ter cuidado e diligência. Já não somos os mesmos homens.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

Data: Domingo, 20 de julho de 2008, 20:31:48.


[1] Texto Disponível no sítio http://revistatrip.uol.com.br/168/arquitetura/home.htm. Acessado em 19 de jun de 2008.

[2] ARBEX, José; TOGNOLI, Cláudio Júlio. Mundo Pós-Moderno. São Paulo: Scipione, 1996. p. 10.

[3] Idem, p. 12

[4] BICUDO, Hélio. Violência – O Brasil Cruel e Sem Maquiagem. São Paulo: Moderna, 1994. p. 44

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