quinta-feira, novembro 10, 2011

Memórias - os itinerários do tempo (II)

Nasci na Zona da Mata pernambucana. Região que recebe esta designação, porque abrigava grandes porções da Mata Atlântica quando da chegada dos portugueses. Lugar de exuberância verde. De pluralidade de espécies. De uma vegetação pródiga. De um terreno muito típico. De clima tropical. Planaltos e planícies enormes. Ainda hoje é possível encontrar pedaços da vegetação preservada em locais da Zona da Mata nordestina. Por conta das exigências econômicas, os portugueses foram destruindo a vegetação original: primeiro com o pau-brasil, que teve por conseqüência um “esvaziamento” lento da mata, seguido pela degradação; em seguida, com o cultivo da cana de açúcar, na qual grandes porções foram desmatadas. Ainda hoje a região é conhecida como zona canavieira.

Ainda é possível vê o resultado desse tempo de progresso e privilégio econômico. A região era preenchida por grandes engenhos, que como feudos medievais abrigavam toda sorte de gente. Os donos de engenho podiam ser considerados como os senhores feudais. Uma classe constituída por “privilegiados”, exploradores da ingenuidade e da miséria do povo. Ela detinha soberanamente toda sorte de regalias econômicas, políticas e podia interferir na vida de quem quisesse como um César da Antiga Roma. Do outro lado havia os assalariados que “viviam de depender” do senhor de engenho, possuidor da alcunha de “coronel” ou “doutor”.

Os engenhos eram organismos que possuíam vida própria. O vigor de um engenho era medido pela visão que se tinha da sua chaminé. Para um estado normal na saúde do engenho, era preciso que ele cuspisse fumaça. Significava que ali havia vida produtiva nos pulmões do engenho. Pessoas ali estavam trabalhando, produzindo, moendo a cana. O sangue que corria nas veias do engenho era doce. Aquilo entusiasmava os moradores do engenho, pois isso significava trabalho, ocupação, possibilidade para os “matutos” daquela comunidade terem o que fazer, buscar subsistência, ter condições de oferecer o necessário para a família – geralmente volumosa.

Quando a safra da cana passava, iniciava-se o período de cultivo, de adubagem, processo de “temperar” o solo a fim de fazer com que, a cana que crescia, encontrasse os nutrientes necessários. Dessa forma, o ciclo manter-se-ia e a saúde do engenho permaneceria sem ameaças graves.

Com o tempo, os engenhos foram entrando em decadência. Começaram a passar por um processo de “constipação estrutural”. Processo grave, de desembocadura terrificadora. Geralmente, os agentes patrocinadores dessa debilidade eram a maquinaria obsoleta, os modos rústicos e primevos dos engenhos que não podiam fazer frente às usinas que surgiam como locomotivas velozes, imparciais, prontas para atropelar quem estivesse à frente. Os achaques não isentavam ninguém. Quando o engenho adoecia, adoeciam também os moradores. A miséria gravitava na sorte de cada um dos moradores do engenho como um morcego negro, anunciador de augúrios inamistosos. Para onde ir com a família? Aonde alugar o serviço da enxada ou dos lombos duros como uma cangalha de jumento? Os engenhos estavam ameaçados por um vírus para qual não havia antídoto, a modernidade tecnologizada. A maquinaria substituiria os braços bambos, excessivamente magros do trabalhador acostumado às tarefas insensíveis.

Os engenhos adoeciam. As suas luzes eram extintas como estrelas que se obliteram num processo de gastamento, de perda de energia fluídica. As chaminés não mais faziam espirrar fumaça para o céu. Dia a dia elas se apagavam denunciando um mal estar que parecia crônico. Os moradores não tinham mais o que fazer. Como José Lins do Rego escreveu no seu romance Bangüê quando da ameaça de extinção do engenho Santa Rosa: “O engenho Comissário, em ruínas, com os restos do maquinismo exposto ao tempo. O melão-de-são-caetano gosta de enfeitar sempre estas desgraças. Onde houver uma casa caindo lá se encontra ele com viço, com aquele gesto de hiena pelos cadáveres” . A ruína dos engenhos foi sendo sacramentada pela fúria faminta das usinas. Muito dos moradores dos engenhos se tornaram retirantes, nômades da miséria, que pervagavam num desterro medonho, como alma penada. Saíam pelo mundo a oferecer os seus serviços, procurando uma Canaã na qual pudessem plantar, criar um novilho, uma cabra que desse leite. Em suma, buscar uma vida que conferisse possibilidades de alimentação regulares. Sonho pequeno, mas alimentado por uma expectativa volumosa, cheia de arrebiques supersticiosos. Supertição que sempre fez parte do imaginário do povo nordestino. A realidade miserável e lúgubre é entendida por uma metafísica determinista, de um Deus caprichoso, cheio de desejos e vontades mesquinhas. Deus este que parece caçoar com a miséria insalubre que o povo nordestino vive mergulhado: prende as chuvas, não se agrada das sazões providentes; concede privilégios a poucos e enfia o resto numa existência de penúrias e sortilégios. Tragédia. Caos social.

Os engenhos foram se tornando ruínas. Com a saúde desfalecida, restava a decomposição estrutural; com o tempo, os esqueletos do que fora o engenho ficavam à mostra. Cavername medonho. Carcaça morta. O bangüê arruinado. Tachas com samboques, morada de lagartixas. Bagaceira com entulhos mofados – ninho de jararacas e corais. Moenda enferrujada, comida pela ação dos agentes naturais. Esqueleto ruído, arreganhado, os engenhos morriam numa espécie de hecatombe processual.

Estes espaços passaram a pertencer às usinas. Aqueles engenhos que não foram vendidos ou apoderados pelas usinas, abrigaram os magotes de seres alheados do mundo. Gente matriculada na escola da sobrevivência, doutrinada nos métodos pedagógicos da subserviência, treinada no abecedário da subsistência. Gente analfabeta para as letras, mas capaz de soletrar a vida como ninguém. Foi de uma localidade com estas feições que vim para a vida.

Escrito em 2006.

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