Motivos iniciais - a fecundação do caos
Este texto, resultado de uma
pensata pouco convincente, deveria ter saído há um mês atrás. Devido a circunstâncias pouco favoráveis eu não pude escrever. Mas vamos lá: há um mês atrás a indústria fonográfica mundial - dia 13/09 - comemorou 20 anos do lançamento do álbum
In Utero, último disco de estúdio da banda de Kurt Cobain, lendário líder do Nirvana. Falar do Nirvana é lembrar a minha adolescência. É voltar ao início dos anos de 1990, época da explosão do movimento grunge, época esta também em que descobri o rock.
Quando me analiso e tento encontrar explicações plausíveis que expliquem o fato de até hoje ouvir a banda de Kurt Cobain, entendo que se trata de um apelo das emoções. A banda musicalmente era ruim. A voz de Kurt era um grunhido gritado. Em muitos momentos ele desafinava. As suas performances eram irracionais. Mas o selo da rebeldia estava em tudo aquilo e, talvez, esse fato seja um combustível para as nossas necessidades mais primitivas.

Alex Ross em seu excelente livro
Escuta Só, diz que Cobain escolheu voluntariamente "um caminho para a morte". Ou seja, sua trajetória estava marcada e traçada por conta de uma vida de abandono e instabilidade emocional desde o início de sua carreira. Charles Cross, por sua vez, na biografia
Mais pesado que o céu, livro este em que é pintada com cores bem vivas a conturbada e cinzenta vida do líder do Nirvana, deixa muito claro o sujeito complexo e emocionalmente instável que era Kurt Cobain. Para entendê-lo é necessário mergulhar em sua história familiar. Na separação dos pais. A mãe Wendy e seu pai Don, formaram um casal instável. Parecia haver uma condição psicológica perturbada na família da mãe de Cobain. Segundo Cross, Wendy separou-se de Don sem maiores explicações e a partir daí começa a desagregação existencial de Kurt.
Passou a viver de favores na casa de amigos. A receber salários ordinários em sub-empregos. Kurt não era muito disposto ao trabalho. Gostava mesmo era de rock. O movimento punk em alta no final dos anos 70 e início dos anos 80 era sua grande atração. Sua vida era "vagabundar" pelos bairros de Aberdeen, sua cidade natal, no estado de Washington, extremo oeste americano.
Ao formar o sua primeira banda, a
Fecal Matter ("Matéria Fecal"), em 1985, nota-se o tom de escracho e ao mesmo tempo, de insubordinação adolescente e que seria a sua marca. Tal alusão subjacente foi cantada inconscientemente em
Smell like teen spirit ("Cheira a espírito adolescente"). A
Fecal Matter não fez nenhum show. Foi uma proto-ideia daquilo que mais tarde seria o Nirvana. O certo é que Kurt sempre mostrou-se introspectivo. Mesmo antes de se tornar famoso, sempre mencionava a possibilidade do suicídio.
Bleach e Nervemind - organizando o caos

Em 1989, Cobain lançaria o disco que seria uma espécie de panfleto de sua estética. É um disco muito importante para o movimento grunge. Ele consolida aquilo que já vinha sendo feito por bandas como Melvins ou Mudhoney. O disco foi gravado pela famosa e marginal gravadora Sub-Pop, que logo em seguida despejaria para o mundo uma quantidade de bandas desconhecidas, acreditando que no meio desse caudal haveria "outros nirvanas".
Bleach é um disco barulhento, de som sujo e gritado. As músicas possuem uma marca que seguiria a banda em sua trajetória efêmera: o som se amalgamava com a voz feita sob encomenda de Kurt Cobain. Os solos de guitarra são desarmônicos. Existe uma não-linearidade nesse sentido, como se a banda quisesse formar uma nova plástica musical. Outras duas músicas chamam a atenção pela "violência plástica":
Paper Cuts e
Negative Creep.

Era um bofete em bandas hegemônicas do
mainstream como Guns n' Roses, Metallica ou Iron Maiden. Aquilo era cru e sujo ao extremo. Um exemplo disso (a música que escuto agora enquanto digito essas linhas) é
Floyd the Barber, que trazia um som encorpado, pegajoso, untado pela voz desesperada de Kurt. A música nos transmite uma forte impressão de que se trata de uma algo feito por colegiais que resolvem se divertir na garagem para desespero dos pais. Àquela altura, Kurt já tinha 22 anos de idade. Começava a fazer shows em vários locais dos Estados Unidos. Foi à Europa. Tocou na Inglaterra. Kurt Cobain ao vivo impressionava. Era um tipo diferente fazendo rock. Suas performances chamavam atenção. Sua música possuía uma energia extraída dos subterrâneos, de cavernas escuras. Era levada ao mundo por meio de vagidos agônicos. Músicas como
Love Buzz ou
School apareciam em momentos altos dos shows para delírio dos fãs, que quando não entendiam o espetáculo, ficavam a olhar os desvarios artísticos do profeta da nova geração, uma espécie de Jim Morrison redivivo.

Em 1991, o grupo gravava com a poderosa Geffen. Saía o disco comercial que consagraria a banda -
Nevermind.
Nevermind é um marco da indústria fonográfica. Impossível falar em rock sem mencioná-lo. Talvez esteja ao lado de discos como
Sargent Peppers, dos Beatles, ou
Led Zeppelin IV, do Led Zeppelin, em matéria de importância.
Nevermind unia a semântica comercial ao som vocacionado para embalar uma geração. Era um disco feito sob recomendação. Os acordes iniciais de
Smell like teen spirit, a música que abre o disco, era uma espécie de brincadeira. Mas a música era terrivelmente boa. A diferença de
Nevermind em relação ao
Bleach é gritante. A estética do grito foi substituída pelo uso convincente de letras fáceis e grudentas e uma harmonia que ficava presa na cabeça. Os sentidos pareciam exigir aquela música que trazia uma "fragrância nova", que "cheirava a liberdade". Parecia falar às necessidades dos jovens. Não percebíamos que tudo aquilo eram solilóquios, monólogos, de uma alma achacada. Kurt era um sujeito indefeso que encontrava nas drogas a sua válvula criadora. Ele parecia estar fazendo expiação às contradições do mundo burguês. A juventude que via nele o ícone de uma nova geração, não percebia que ali estava um sujeito que também pedia socorro. Os desencontros e as contradições geradas na sociedade de classe leva os homens a se automutilarem.
Com
Nevermind, Kurt ganhou rios de dinheiro. Tornou-se herói. Mas tudo aquilo parecia ser insignificante para ele. Seu vício contumaz. Suas tentativas malogradas de largar as drogas. Sua personalidade introspectiva parecia dizer para o mundo que sua vida corria perigo. Ele era o seu pior inimigo.
In Utero - o paroxismo do caos

Em 1993, começava o projeto para gravar aquele que seria o terceiro disco de estúdio - e último também. Kurt queria fugir dos clichês comerciais e propagandísticos do disco anterior. Queria regressar aos momentos iniciais da banda. Tanto é assim, que
In Utero esteticamente está mais próximo de
Bleach do que de
Nevermind. A diferença é que
In Utero está dentro de um invólucro de dor, de desespero, de ácidos sujos, de uma atmosfera doentia. Em quatro anos de sucesso constante e meteórico, a banda na pessoa de Kurt havia alcançado um "nirvana paradoxal". Não se tratava da quietude perpétua como apregoa a doutrina do budismo, mas o paroxismo do caos. Era a consagração do paradoxo. O disco nos coloca uma pergunta: "no útero de quê?" Talvez, tenhamos encontrado o enunciado mais verdadeiro e repleto de significados existenciais saído da garganta de Cobain.
In Utero começou a ser gravado em fevereiro de 1993. A banda escolheu Steve Albini, um mago do rock independente da cena americana. É curioso notar a mudança perpetrada no itinerário da banda. A sonoridade de
In Utero é uma das coisas mais viscosas da história do rock. Um exemplo que pode ser contraposto é a
On Plain,
de Nevermind, e
Milk It, do comentado disco. Enquanto aquela soa como uma lufada de vento "em uma planície", esta possui uma sonoridade sufocante, repleta de agonia e uma letra desconexa ("her milk is my shit/ My shit s her milk" ["O leite dela é minha droga/ Minha droga é o leite dela"].
Havia a desconfiança de que o disco não emplacaria. Mas aconteceu o contrário. A sua perspectiva lírica gira em torno de sexualidade, nascimento, morte, doença, vício. Era a agonia de Kurt. Sua alma, finalmente, mostrava-se. Vivera alguns anos querendo voar. O disco exatificava seus sentimentos. Dali para frente seria a derrocada. Tanto é assim que em 5 de abril (possivelmente) de 1994, ele atirou contra a própria cabeça com uma espingarda, pondo fim à sua curta história de fama e solidão existencial.
Os ecos do caos

O espectro de Kurt Cobain ainda assombra a muita gente. Sua voz ainda continua poderosa. Sua música encanta muitos jovens em torno do mundo. Ele derramou "o cheiro" de sua música por todos os cantos. O Nirvana ainda é uma banda comercialmente rentável. Estima-se que a banda tenha vendido mais de 50 milhões de discos em todo o mundo. Somente o
In Utero já vendeu mais 10 milhões de cópias desde o lançamento. O disco está ao lado de discos dos Beatles, Bob Dylan, Rolling Stones, Queen, Led Zeppelin e Pink Floyd na lista dos cem discos mais importantes da história, segundo a revista americana Blender.
Curiosamente, continuo ouvindo Nirvana - especialmente o
In Utero. Ao ouvi-lo, é como se eu voltasse no tempo. A primeira vez que o escutei foi em 1994. Comprei em uma loja de discos. Era um fita K-7. Não sei onde ela foi parar. Ouvi-a tanto... gritei tanto... Os ecos do caos continuam a produzir a sua música gritada e agônica - e o pior é que existe uma satisfação nisso tudo.