Pintura do artista realista estadunidense Tom Sierak |
A
felicidade não é determinada por aquilo que tenho em sentido
financeiro. Ela está ligada ao encontro. Faz-se nova e satisfatória
quando enxergo ao final dos meus passos a dádiva que é o outro. O mundo
moderno espicaçou esse valor. Nossa sociedade assentada no
individualismo esconde-se do outro. Queremos cada vez mais o
individualismo, pois temos medo do encontro. O outro é sempre uma
incógnita. Um mundo enorme de possibilidades. Exige diálogo, energia,
desprendimento, um mergulho existencial para que eu possa desvelá-lo.
Atomizados
em nossos mundos. Encerrados em uma rede social. De cabeça baixa,
flertando um espelho que reflete nós mesmos, as telas coloridas dos
celulares ou computadores, somos narcisos sem faces. Não usamos mais a
palavra falada, verbalizada. Ao emitirmos sons, balbuciamos um
"kkkkkkk", que denuncia o lado primitivo e vazio de nossas conversas, de
nossas relações. Se o assunto é sério, fazemos silêncio. Mas se é uma
piada, uma imagem que existe no grotesco cotidiano, soltamos o gutural
"kkkkkkk", a finalidade última de nossas "conversações epiteliais".
Toda
essa crise apenas revela o quanto estamos mais distantes de nós mesmos e
dos outros. Nós "nunca nos comunicamos tanto" como ultimamente, mas
nunca dissemos tão pouco. E é nesse fluxo paradoxal que assentamos o
nosso individualismo meticuloso, casmurro, grávido de inalteridade.
Escrevo
essas coisas, pois a frase de McCandlles, fez-me pensar na relação que
tive com o meu pai, morto há quinze anos; e no medo que tenho da
paternidade. Sobre o primeiro fato é importante mencionar que minha
relação com meu pai foi estranha e alicerçada em um receio que surgia da
indiferença. Até hoje tenho a imagem dele como um sujeito
irresponsável. Não me relacionei bem com ele. Geralmente cercado por
amigos dissipadores, meu pai fazia o papel de um sujeito dado aos
rompentes de alegrias gratuitas. Embriagava-se com frequência. Para mim,
sua presença consistia em um fator negativo. Quando estávamos sozinhos
e, ele não se encontrava enfronhado nas emanações etílicas, o silêncio
era um sacerdote que sacramentava nossa relação. A fala embargava quando
me dirigia a ele. Escorria como um fio fino e intermitente,
equilibrando-se a custo no trilho delgado das emoções. Morreu cedo - aos
46 anos de idade.
Muitas
foram as vezes em que pensei: "Se um dia eu constituir uma família, não
serei como meu pai". Essa relação kafkafiana (não escrevi nenhuma carta
a ele), tornou-me um sujeito introspectivo. Tímido. Não afeito às
relações. Talvez, tenha sido isso que me levou a procurar no mundo da
leitura o apoio das palavras. Elas criavam estruturas sólidas. Nelas eu
me sustentava. Agarrava-me. Protegia-me dos ventos fortes das
instabilidades relacionais. Até hoje tenho dificuldades de conversar com
pessoas com quais estabeleço relação pela primeira vez.
Necessariamente,
isso afeta minha disposição para a paternidade. Eu minha esposa temos
conversado bastante sobre isso. Ela que chega ao limite da idade fértil,
preocupa-se - e preocupa-me. Eu, por meu lado, cercado por receios
variados, isolo-me numa planície de pessimismo. Olho para trás e
compreendo o significado de tudo. Há casais que optam por não terem
filhos. Vivem bem com isso. Conseguem separar as coisas. Não existe um
mandamento universal para a paternidade ou para maternidade. Nascemos e,
ao virmos ao mundo, é dado o dispositivo biológico para a reprodução. É
a cultura que constrói significados para isso.
Todavia,
pensando sob a perspectiva do filme, de quê é feita a vida senão de
encontros? Tudo flui. Vai. Evola-se. Dissipa-se. Mas, a felicidade
contida no encontro e no compartilhamento não se pode medir. Há uma
outra cena muito bonita e significativa na obra de Sean Penn. O jovem
McCandlles encontra um senhor chamado Ron Franz. A personagem vive
sozinha. É um militar aposentado. Não constituiu família. Ele diz uma
das frases mais bonitas do filme: "Quando você perdoa, você ama; e
quando você ama, a luz divina brilha em você". No momento em que as duas
personagens se despedem, Ron faz um pedido a McCandlles: queria adotar
este como seu neto. Ele não tinha pai, mãe, nem filhos. Quando ele
morresse, a história de sua família teria fim. McCandlles estava tão
firme em seu propósito de chegar ao Alaska, que apenas diz: "Quando eu
voltar, conversaremos sobre isso, Ron".
O
que é certo é que a vida, em alguns momentos, não espera pelas nossas
decisões. O silêncio de suas ações se mostra maior do que nossas
vaidades. Assim, há duas frentes: aquela que estabelecemos, como
resultado da nossa vontade, e um devir convergente, que atua como fluxo.
É justamente essa dialética que faz vida. Quem souber tirar proveito
desse encontro ao lado das pessoas que ama, certamente encontrará a
felicidade. É o outro que me revela. Nele encontro os meus limites. Em
sua face está estampado o meu orgulho e minha capacidade de não amar. As
pontes que me separaram do outro, também impedem que eu me conheça.
Mas, no encontro, também, está capacidade de me tornar mais solidário,
mais manso, mais sábio, desde que eu saiba compartilhar a minha
existência.
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