sábado, janeiro 27, 2018

E AGORA, JOSÉ? A direita saiu do armário; a esquerda entrou

Você é capaz de identificar uma pessoa de esquerda? De direita é óbvio: defende a primazia do capital sobre os direitos humanos e o caráter sagrado da propriedade privada; apoia a privatização do patrimônio público; venera o gigantismo dos Estados Unidos; apregoa que “bandido bom é bandido morto”; e costuma ser racista, homofóbica e indiferente aos direitos dos mais pobres.

Ao longo de doze anos de governo do PT, a direita se manteve no armário. Não tinha razões para exibir as garras afiadas, já que se beneficiava economicamente (robustez da Bolsa de Valores, isenções tributárias, benesses do BNDES, captação de investimentos estrangeiros etc.).

Bastou a economia brasileira dar sinais de insustentabilidade para a direita sair do armário, decidida a assumir o controle da nação. A exemplo do que ocorrera em Honduras e no Paraguai, armou-se aqui um golpe parlamentar. Destituiu-se uma presidenta democraticamente eleita, isenta de qualquer acusação de ter cometido crime, para empossar Temer, acusado de vários e graves crimes.

A direita errou o alvo. Constrangida, não bate panelas quando Temer dá as caras na TV nem ocupa as ruas para protestar contra a corrupção escancarada. Mas vocifera raivosamente diante do menor indício de que o Brasil possa vir a ser novamente governado pelo petismo.

O que me parece estranho é a oposição não ir além dos limites do Congresso. Por que o “Fora, Temer” não ganha as ruas? Por que os movimentos sociais, sindicais e estudantis permanecem imobilizados, exceto quando se trata de reivindicações pontuais e corporativas, como ocupações de áreas urbanas e rurais? Onde se enfiou a esquerda brasileira?

Somos, hoje, uma esquerda envergonhada. A corrupção nos atingiu e abateu a nossa moral. Ficamos calados perante o ajuste fiscal proposto pelo governo Dilma. Trocamos um projeto de nação por um projeto de poder. Não cuidamos da alfabetização política do nosso povo. Não criamos uma mídia capaz de se contrapor à versão da direita.

Nossa “pátria-mãe”, a União Soviética, ruiu. A China enveredou-se pelo capitalismo de Estado. O futuro da Revolução Cubana é incerto. “Proletários de todo o mundo, uni-vos”, exortava Marx. Foram os biliardários do mundo todo que se uniram em Davos. Como assinalou o historiador Perry Anderson: “Pela primeira vez, desde a Reforma, não há mais oposição propriamente dita – de visão de mundo rival – no universo do pensamento ocidental e quase nenhuma em escala mundial. […] O neoliberalismo, como conjunto de princípios, reina inconteste no globo”.1

E agora, José? Permanecer no armário e aguardar o resultado das eleições de 2018? Quem garante que os eleitos ao Congresso não serão ainda mais conservadores do que os atuais parlamentares? Ainda que Lula escape das ciladas da Lava Jato e vença a eleição presidencial, que tipo de alianças fará para assegurar a governabilidade?

Nós, da esquerda, abandonamos o trabalho de base, a formação de militantes, o enfrentamento ideológico. Sob os escombros do Muro de Berlim ficou soterrado nosso arcabouço teórico. Nunca mais fomos os mesmos. Ao nos afastarmos da base popular perdemos a vergonha de ser burgueses. Silenciamos quanto ao futuro socialista. Passamos a acreditar que o capitalismo é humanizável, tigre vulnerável a se transformar em gatinho doméstico. Arranha, mas não devora…

Se o nosso arcabouço teórico ficou sob o Muro de Berlim, a razão primeira da existência da esquerda se agigantou, mas nem sempre tivemos olhos para ver a grande horda de excluídos e marginalizados. Porém, o pobretariado não figura em nossas cogitações. Até gostamos de governar para ele, não de manter vínculos orgânicos que deem consistência a uma proposta política transformadora.

O passado se foi e não sabemos ainda como reinventar o futuro. Nossas ações pontuais, todas meritórias, não se consubstanciam em uma proposta política com indícios de viabilizar “o outro mundo possível”. Visto de hoje, ele parece impossível.

O que nós, progressistas (poupemos o termo “esquerda”), queremos de fato: governar para o povo ou governar com o povo?

Apesar dessa ausência de povo nas ruas e aparente inércia, algo de novo brota no seio da esquerda brasileira: a Frente Povo Sem Medo (www.vamosmudar.org.br) e a Frente Brasil Popular; além de tantas lutas assumidas por movimentos indígenas, quilombolas, atingidos por barragens, mulheres, LBGTodos etc. E nas redes digitais se fortalece a oposição ao governo Temer, obrigando-o a recuar em relação a medidas de retrocesso social.

Sem deixarmos de fazer autocrítica, há que guardar o pessimismo para dias melhores.


*Frei Betto é escritor, autor de Paraíso perdido – Viagens ao mundo socialista (Rocco), entre outros livros.

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