A Bíblia é considerada por bilhões de pessoas em todo o mundo como um livro sagrado, de autoridade inquestionável. Ela é a expressão exata daquilo que Deus falou. É a verbalização, a materialização de sua voz. O inequívoco sopro de Sua boca, tornado em evento por meio dos profetas, evangelistas e outros sujeitos anônimos que, ao longo de mais de mil e quinhentos anos, foram responsáveis por essa construção.
Analisando por essa perspectiva meramente de fé, os cristãos dizem que não há um equívoco sequer em seu texto. Está de acordo com a vontade da soberana de vontade do Criador. A própria Bíblia utiliza uma metalinguagem para justificar a sua autoridade. Na segunda carta, supostamente escrita por Pedro, encontramos uma afirmação categórica: "E temos, mui firme, a palavra dos profetas, à qual bem fazeis em estar atentos, como a uma luz que alumia em lugar escuro, até que o dia amanheça, e a estrela da alva apareça em vossos corações. Sabendo primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo". (2 Pedro 1:19-21).
Quem lê a Bíblia em nossos dias, não relaciona o fato de que sua escrita seja o resultado de disputas. Essa tese está no livro do professor Bart D. Erhman "Quem escreveu a Bíblia?", que acabei de ler. Ehrman, um renomado estudioso do Novo Testamento, mostra que boa parte da redação atribuída a determinados autores não se sustenta. Ou seja, a menção a esses autores está equivocada.
Tomemos como exemplo as duas epístolas de Pedro. Sempre percebi nas leituras que já fiz das duas cartas que havia elementos distintos da personalidade do apóstolo daqueles encontrados nos evangelhos. Pedro era um indivíduo bronco, dado a rompentes; de personalidade forte, impulsivo. Em um dos episódios narrados nos evangelhos, Pedro corta a orelha de Malco, um dos soldados romanos que vieram prender Jesus. Ainda segundo os evangelistas é ele que quer que desça um raio do céu para fulminar aqueles que não creram em Cristo. Todavia, quando lemos as duas epístolas, notamos um Pedro diferente - articulado, conhecedor dos textos Antigo Testamento; conselheiro, de sabedoria proverbialmente paulina.
Possivelmente, Pedro fosse um analfabeto. Segundo o próprio Erhman, apenas 3% das pessoas nos tempos de Jesus sabiam ler ou escrever. A grande massa de pessoas viviam numa profunda ignorância. É estranho que, de repente, Pedro se levante como uma autoridade intelectual. Outro elemento destoante é a qualidade do grego utilizado para escrever a carta, que é de boa qualidade. Pedro, certamente, não sabia grego. Sua língua era o aramaico, como um palestino humilde que era; habitante do norte de Israel.
Utilizo a epístola de Pedro como exemplo citado por Erhman, mas, nos supostos textos de Paulo, também encontramos atribuições indevidas. A tradição entende que quase metade dos textos do Novo Testamento foi escrito por Paulo. Esse fato não se sustenta para Erhman. Para ele, não são paulinas as cartas de: I e II Timóteo, Tito (chamadas de cartas pastorais); Efésios, II Tessalonicenses e Hebreus.
Durante os primórdios da Igreja, não havia um cânon (o conjunto de livros ditos "sagrados" como convencionamos hoje). Havia uma tradição oral. As pessoas que haviam convivido com Jesus transmitiam as narrativas. Aos poucos essas histórias começaram a ser coligidas, reunidas. O primeiro evangelho a surgir foi o de Marcos. Logo em seguida vieram Mateus e Lucas. O Evangelho de João foi último. A grande questão é saber quem de fato eram essas pessoas. Os nomes foram atribuídos. Não significam que pessoas com esses nomes e personalidades escreveram esses textos. Há dezenas de outros evangelhos escritos, mas, por que somente esses foram considerados sagrados? Existem livros atribuídos a Pilatos, a Nicodemos, a Maria Madalena, a Tomé, a Pedro etc; há livros de sujeitos que viveram próximos aos apóstolos como Clemente.
Ao longo dos séculos, foram os concílios os responsáveis por fixar o que cabia e o que não cabia no chamado cânon. É possível que muita coisa que "não era" passou a ser considerado como sagrado; e muita coisa que "era", que também deixou de ser. O fato, é que "o uso" e a repetição de determinado entendimento cria a consolidação daquilo que é sagrado assim como conhecemos. Hoje, por uma questão que se tornou inquestionável, colocar em dúvida esses textos é cometer um crime mortal.
Não se trata de uma implicação com a Bíblia. Erhman é um debatedor honesto. Sua função não é atacar a Bíblia, destratar a fé alheia. Suas argumentações são acadêmicas e honestas. Vale a leitura!
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