sexta-feira, março 27, 2020

"Star Wars: A ascensão de Skywalker" - mais do mesmo

 
Esses dias de quarentena têm servido para, entre outras coisas, assistir a alguns filmes. Por causa de uma demanda categórica, resolvi ver Star Wars: A ascensão de Skywalker, o episódio IX da conhecida saga iniciada or George Lucas ainda nos anos 71 do século XX. Falo em "demanda categórica" por ser fã de Lucas. Queria ver o que fizeram com a intriga cósmica que ele criou.

Como explicitei aqui há algumas semanas, Lucas vendeu para os estúdios Disney os direitos sobre os filmes. Até o momento da venda eram apenas seis filmes. 

Para preencher uma sede, a princípio, dos fãs do filme, começaram a surgir obras quase anuais da saga. Quando não seguem o fluxo dos episódios, abordam perifericamente algum personagem ou evento não muito bem explicitado da saga. O objetivo disso tudo, claro, é o fator financeiro. Busca-se o lucro. As cifras bilionárias, pois ainda existe um público cativo; disposto a quedar-se diante da magia iniciada por Lucas.

Foi em busca da magicidade, que busquei assistir ao episódio IX. Infelizmente, a experiência não foi das melhores. Acredito que não existe mais o que explorar naquilo tudo. Falta imaginação. Há uma previsibilidade em tudo o que acontece. Os conflitos entre as personagens que compõem as hostes que se rebelam contra a Primeira Ordem já não empolga. Mais do mesmo. Os vilões, por sua vez, são imperfeitos em demasia. Houve uma tentativa de inserção do Senador Palpatine contra a Ray, a última Jedi. Teria sido melhor se o conflito entre os dois não tivesse acontecido. O conflito entre os dois possui rápida resolução. Acredito que este seja um dos problemas do filme: os conflitos possuem uma rápida resolução.

O conflito que leva ao clímax é um dos pontos mais baixos do filme. Sinceramente, cansa do início ao fim: milhares de naves imperiais contra naves capengas e sucateáveis. Foi-se o tempo em que havia filosofia, religiosidade, magia; uma crença imponderável, a maravilhosa direção e o olhar clínico de Lucas. Tudo me pareceu bastante descuidado. Sem força imagética. Repetitivo. Suntuosamente, desgastado.

Trata-se de um tipo de obra que não dá sustos no espectador. É redonda em excesso. Já se sabe a que porto vai chegar. 

Com certeza, um dos piores filmes que vi nos últimos tempos.

quarta-feira, março 25, 2020

"Rashomon", de Akira Kurozawa

"É inevitável suspeitar dos outros num dia como este". 

Gosto de filmes que me faz pensar; que permite a reflexão, a tentativa de entender seus elementos simbólicos e metafóricos. Daqueles que deixam suas imagens presas em minha mente e inoculam o desejo de visitá-lo mais de uma vez. E, com o tempo, tornam-se referências necessárias a uma boa reflexão. 

Esse fato aconteceu mais uma vez esta semana. Com a decretação da quarentena por causa da pandemia de coronavírus, tive a oportunidade de assistir a Rashomon, umas das experiências mais felizes que já tive com o cinema. Rashomon é uma obra de 1950, dirigida por um dos mais importantes e geniais diretores da história do cinema, o japonês Akira Kurozawa. 

O diretor utilizou-se de dois contos escritos por Ryunosuke Akutagawa. Com elementos simples, Kurozawa dirigiu uma das mais belas, poéticas e misteriosas obras de todos os tempos. Existem basicamente três espaços na história: os portões de Rashomon, a floresta e o tribunal. Não há muitos personagens: um ladrão, um padre, um lenhador, um plebeu, um samurai e a esposa deste.

A história não possui um plano linear. Não existe um plano em que se deixe prevalecer certa impressão sobre os fatos. Na verdade, com exceção do padre e do plebeu, todas os demais personagens são narradores. O filme problematiza os limites para se contar um fato e os seus desdobramentos; consequentemente, as interpretações que são dadas a esse fato.


Nesse sentido, evoca-se Nietzsche que disse certa vez que "não há fatos; apenas interpretações". Um fato não gera fidelidade àquilo que vai ser feito com ele. 

O filme não nos permite ter uma pista do porquê cada personagem personaliza a descrição do assassinato do samurai e do estupro de sua esposa pelo endiabrado Tajomaru. Mas, tanto quanto as personagens que estão no portão, ficamos sem saber qual das quatro versões do evento da floresta é a verdadeira. 

A atuação dos personagens é genial. O padre é a figura que perde a crença no ser humano. Essa perspectiva fica evidente em sua fisionomia, no seu atordoamento. Na última cena do filme, assim como a chuva que cessa (como se ela metaforizasse o aspecto pessimista do anti-humanismo), um lampejo de crença ensolarada brota em seu rosto e esparrama-se em suas palavras, dirigindo-se ao lenhador: "Graças a você acho que posso manter minha fé nos homens". Todavia, com tudo o que se testemunha no filme, questiona-se as próprias intenções do interlocutor do padre. A cena final é bonita, emblemática, insinuadora de pessimismo e, ao mesmo tempo, de uma esperança luminosa. 

Queremos crer, mas gesta-se certa desconfiança. Por que acreditar se os homens são potencialmente mentirosos e egoístas? Este é dilema que resulta da experiência de assistir ao filme. Celebra-se o humano, mas celebra-se a desconfiança, a descrença. Kurozawa genial!


sexta-feira, março 20, 2020

A justiça em um coportamento exemplar - o caso do irmão mais velho do filho pródigo

O Retorno do Filho Pródigo, de Rembrandt, séc. XVII


A parábola do filho pródigo ou do pai amoroso, encontrada no texto bíblico atribuído ao médico Lucas, é rica em significados. A enorme quantidade de reflexões procura colocar em evidência a jornada inconstante do jovem que abandona sua casa, seu velho pai e leva consigo parte da herança. Há ainda uma preocupação em tornar visível o amor incontido, silencioso, gracioso do pai. Ele ficava à porta esperando, diariamente, o retorno do filho inconsequente.

Por sua vez, ao se falar do filho mais velho, o que ficara em casa, aquele que vivera o luto do pai com a partida do irmão; que concentrara responsabilidades por causa da saída do irmão novo; que estivera trabalhando no campo e observou, ao voltar, uma algazarra, um vozerio, que vinha da casa e, simplesmente, perguntou para um criado o que acontecera. Ele é costumeiramente retratado como alguém amargo, ressentido, rancoroso. Reforça-se a noção de que ele seja uma pessoa dura. Parece não haver um esforço para entender o seu ponto de vista. Segundo Lucas, ao ouvir os sons do festim - e saber ainda que o pai matara o "o novilho gordo" - "encheu-se de ira". Ficou à distância. Nutria em seu silêncio, a indiferença do pai. Procurara, por meio de um comportamento justo, exemplar, ser um filho que orgulhava o pai. Os vizinhos certamente o admiravam. Viam nele um exemplo a ser seguido. Muitas jovens o queriam por marido.

Ele fizera tudo correto. Procedera de forma irretocável. Não havia juízos contra ele. Sua ira era é justa. Seu pai tentou consolá-lo. Arranjar razões. Por sua vez, o filho mais velho estava duro e inerte. Algumas lágrimas brotaram quentes. Rolam pela pele corada e escura. Chegam até à barba fechada - um sinal de dignidade. Prepara-se para falar. Os pensamentos estão em ebulição. As palavras marcham firmes de sua boca. "Olha! Todos esses anos tenho trabalhado como um escravo ao teu serviço e nunca desobedeci às tuas ordens". E, segue, como se as palavras viessem de uma fonte torrencial. "Tu nunca me deste nem um cabrito para eu festejar com os meus amigos. Mas quando volta para casa esse teu filho, que esbanjou os teus bens com as prostitutas, matas o novilho gordo para ele". 

A resposta do pai é desconcertante. Revela uma face para a qual o filho mais velho não estava acostumado. "Tudo o que tenho é seu". E justifica da seguinte forma as comemorações iniciadas: "Mas nós tínhamos que comemorar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi achado". O pai diz "teu irmão" (lembrando que o irmão mais velho empregara a expressão "esse teu filho"), buscando reintegrar a familiaridade entre os dois. 

Diante desse episódio, a sua justiça, comportamento exemplar, são rebaixados. Não há exaltação à sua pessoa. Sua indignação se situa entre a injustiça e o amor. Ele é visto como um coadjuvante vingativo. Cheio de virulência. A história encerra-se com as palavras do pai. Não se sabe o que aconteceu: se ele entrou desconfiado e contrariado, e aos poucos, buscou observar o irmão com outros olhos; ou, simplesmente, continuou inarredável, inflexível em suas convicções de justiça. 

Na conhecida pintura de Rembrandt, ele fica de longe, com ar inerte, segurando um cajado, observando o abraço generoso do pai. O que passa por sua cabeça? Uma indignidade o que acontecia, certamente. Ele entende assim. Trata-se de um antagonismo forte nessa brilhante parábola: de um lado o amor incomensurável de um pai que perdoa; do outro, a justiça irretocável de um filho que levara uma vida exemplar. E uma pergunta surge: ele estava errado em sua ira?