quarta-feira, março 25, 2020

"Rashomon", de Akira Kurozawa

"É inevitável suspeitar dos outros num dia como este". 

Gosto de filmes que me faz pensar; que permite a reflexão, a tentativa de entender seus elementos simbólicos e metafóricos. Daqueles que deixam suas imagens presas em minha mente e inoculam o desejo de visitá-lo mais de uma vez. E, com o tempo, tornam-se referências necessárias a uma boa reflexão. 

Esse fato aconteceu mais uma vez esta semana. Com a decretação da quarentena por causa da pandemia de coronavírus, tive a oportunidade de assistir a Rashomon, umas das experiências mais felizes que já tive com o cinema. Rashomon é uma obra de 1950, dirigida por um dos mais importantes e geniais diretores da história do cinema, o japonês Akira Kurozawa. 

O diretor utilizou-se de dois contos escritos por Ryunosuke Akutagawa. Com elementos simples, Kurozawa dirigiu uma das mais belas, poéticas e misteriosas obras de todos os tempos. Existem basicamente três espaços na história: os portões de Rashomon, a floresta e o tribunal. Não há muitos personagens: um ladrão, um padre, um lenhador, um plebeu, um samurai e a esposa deste.

A história não possui um plano linear. Não existe um plano em que se deixe prevalecer certa impressão sobre os fatos. Na verdade, com exceção do padre e do plebeu, todas os demais personagens são narradores. O filme problematiza os limites para se contar um fato e os seus desdobramentos; consequentemente, as interpretações que são dadas a esse fato.


Nesse sentido, evoca-se Nietzsche que disse certa vez que "não há fatos; apenas interpretações". Um fato não gera fidelidade àquilo que vai ser feito com ele. 

O filme não nos permite ter uma pista do porquê cada personagem personaliza a descrição do assassinato do samurai e do estupro de sua esposa pelo endiabrado Tajomaru. Mas, tanto quanto as personagens que estão no portão, ficamos sem saber qual das quatro versões do evento da floresta é a verdadeira. 

A atuação dos personagens é genial. O padre é a figura que perde a crença no ser humano. Essa perspectiva fica evidente em sua fisionomia, no seu atordoamento. Na última cena do filme, assim como a chuva que cessa (como se ela metaforizasse o aspecto pessimista do anti-humanismo), um lampejo de crença ensolarada brota em seu rosto e esparrama-se em suas palavras, dirigindo-se ao lenhador: "Graças a você acho que posso manter minha fé nos homens". Todavia, com tudo o que se testemunha no filme, questiona-se as próprias intenções do interlocutor do padre. A cena final é bonita, emblemática, insinuadora de pessimismo e, ao mesmo tempo, de uma esperança luminosa. 

Queremos crer, mas gesta-se certa desconfiança. Por que acreditar se os homens são potencialmente mentirosos e egoístas? Este é dilema que resulta da experiência de assistir ao filme. Celebra-se o humano, mas celebra-se a desconfiança, a descrença. Kurozawa genial!


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