sexta-feira, março 20, 2020

A justiça em um coportamento exemplar - o caso do irmão mais velho do filho pródigo

O Retorno do Filho Pródigo, de Rembrandt, séc. XVII


A parábola do filho pródigo ou do pai amoroso, encontrada no texto bíblico atribuído ao médico Lucas, é rica em significados. A enorme quantidade de reflexões procura colocar em evidência a jornada inconstante do jovem que abandona sua casa, seu velho pai e leva consigo parte da herança. Há ainda uma preocupação em tornar visível o amor incontido, silencioso, gracioso do pai. Ele ficava à porta esperando, diariamente, o retorno do filho inconsequente.

Por sua vez, ao se falar do filho mais velho, o que ficara em casa, aquele que vivera o luto do pai com a partida do irmão; que concentrara responsabilidades por causa da saída do irmão novo; que estivera trabalhando no campo e observou, ao voltar, uma algazarra, um vozerio, que vinha da casa e, simplesmente, perguntou para um criado o que acontecera. Ele é costumeiramente retratado como alguém amargo, ressentido, rancoroso. Reforça-se a noção de que ele seja uma pessoa dura. Parece não haver um esforço para entender o seu ponto de vista. Segundo Lucas, ao ouvir os sons do festim - e saber ainda que o pai matara o "o novilho gordo" - "encheu-se de ira". Ficou à distância. Nutria em seu silêncio, a indiferença do pai. Procurara, por meio de um comportamento justo, exemplar, ser um filho que orgulhava o pai. Os vizinhos certamente o admiravam. Viam nele um exemplo a ser seguido. Muitas jovens o queriam por marido.

Ele fizera tudo correto. Procedera de forma irretocável. Não havia juízos contra ele. Sua ira era é justa. Seu pai tentou consolá-lo. Arranjar razões. Por sua vez, o filho mais velho estava duro e inerte. Algumas lágrimas brotaram quentes. Rolam pela pele corada e escura. Chegam até à barba fechada - um sinal de dignidade. Prepara-se para falar. Os pensamentos estão em ebulição. As palavras marcham firmes de sua boca. "Olha! Todos esses anos tenho trabalhado como um escravo ao teu serviço e nunca desobedeci às tuas ordens". E, segue, como se as palavras viessem de uma fonte torrencial. "Tu nunca me deste nem um cabrito para eu festejar com os meus amigos. Mas quando volta para casa esse teu filho, que esbanjou os teus bens com as prostitutas, matas o novilho gordo para ele". 

A resposta do pai é desconcertante. Revela uma face para a qual o filho mais velho não estava acostumado. "Tudo o que tenho é seu". E justifica da seguinte forma as comemorações iniciadas: "Mas nós tínhamos que comemorar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi achado". O pai diz "teu irmão" (lembrando que o irmão mais velho empregara a expressão "esse teu filho"), buscando reintegrar a familiaridade entre os dois. 

Diante desse episódio, a sua justiça, comportamento exemplar, são rebaixados. Não há exaltação à sua pessoa. Sua indignação se situa entre a injustiça e o amor. Ele é visto como um coadjuvante vingativo. Cheio de virulência. A história encerra-se com as palavras do pai. Não se sabe o que aconteceu: se ele entrou desconfiado e contrariado, e aos poucos, buscou observar o irmão com outros olhos; ou, simplesmente, continuou inarredável, inflexível em suas convicções de justiça. 

Na conhecida pintura de Rembrandt, ele fica de longe, com ar inerte, segurando um cajado, observando o abraço generoso do pai. O que passa por sua cabeça? Uma indignidade o que acontecia, certamente. Ele entende assim. Trata-se de um antagonismo forte nessa brilhante parábola: de um lado o amor incomensurável de um pai que perdoa; do outro, a justiça irretocável de um filho que levara uma vida exemplar. E uma pergunta surge: ele estava errado em sua ira?


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