domingo, janeiro 24, 2021

Divagações sobre "Canaã" e o seu autor.


Desde os tempos de ensino médio, escutava informações sobre Canaã, a obra máxima de Graça Aranha. E, nesse sentido, qualquer estudo sobre literatura brasileira - por mais superficial que seja - precisa levar em conta esse importante livro do escritor maranhense. 

José Pereira da Graça Aranha é o nome de nascimento do escritor. Graça Aranha eram os sobrenomes dos seus genitores - Graça (mãe) e Aranha (pai). O escritor nasceu em São Luis, capital do Maranhão, de uma família abastada. Seu pai era político e jornalista. Ainda muito jovem foi estudar na célebre Faculdade de Direito de Recife. A instituição foi um importante centro de fermentação intelectual do Norte e Nordeste do Brasil para onde acorriam os filhos de pessoas ricas e influentes, pertencentes às mais variadas oligarquias do país. A Faculdade de Direito do Recife juntamente com a Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, em São Paulo, eram os locais mais tradicionais onde se podia estudar, formar aqueles que seriam responsáveis pela condução do país. Boa parte da intelligentsia nacional passou por essas instituições.  

Graça Aranha ainda muito novo advoga. Mais tarde, torna-se juiz. Após se estabelecer no Rio de Janeiro, efetiva  contato com um dos mais notáveis políticos e intelectuais do século XIX e início do século XX, Joaquim Nabuco. Foi a partir desse contato, que ingressou na carreira diplomática. Morou na Europa por quase duas décadas. No Velho Mundo, entrou em contato com vibrantes mudanças estéticas no rumo das artes; percebeu, ainda, as mudanças políticas por que passava o Continente com ressonâncias mundiais. Isso certamente foi importante para fazer amadurecer algumas convicções.

O que é importante a ser notado na biografia de Graça Aranha é a sua versatilidade; a capacidade que ele possuía para sempre se redescobrir, para sempre trilhar caminhos novos. Graça Aranha representa a experimentação, o fato de "estar aberto", como disse certa vez Alfredo Bosi, ao novo, ser "um espírito aberto". Sua vida relativamente curta - já que faleceu aos 63 anos de idade - atesta isso. Foi para locais afastados dos grandes centros. Mudou de profissão. Aderiu a movimentos, mas, ao mesmo tempo, rompeu com esses mesmos movimentos.

Foi fundador da Academia Brasileira de Letras. Esteve ao lado dos bastiões da "velha fórmula" - Machado de Assis, Olavo Bilac etc. Mas, a partir de 1922, foi um dos nomes mais comprometidos e abnegados a patrocinar uma nova estética, uma maneira diferente de compreender o país e sua identidade, apoiando incondicionalmente a Semana de Arte de 1922. Em 1924, romperia com a Academia que ajudara a fundar. Ficou ao lado de Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Menotti del Picchia etc. 

Canaã é, assim, fruto de uma mente sempre buliçosa, sempre disposta a encontrar novos rumos. A obra foi escrita em 1902, encontrando um sucesso quase que imediato. Pode-se afirmar de que se trata de um romance-tese, uma experimentação sociológica e antropológica por meio da literatura. Possui um forte aceno revisionista, assim como O Guarani de José de Alencar, escrita algumas décadas antes. 

Graça Aranha

Graça Aranha então com 34 anos de idade, já era um sujeito famoso e maduro ao escrever o livro. O motivo para escrevê-lo ele encontrou quando morou no Espírito Santo nos tempos de magistratura. Ele assinalou algumas histórias e a forte impressão causada pela chegada dos imigrantes alemães na região. Milkau e Lentz são os dois personagens da obra que representam visões de mundo. Aquele acredita que o progresso das sociedades se dá à medida que ocorre a mistura de raças acontece. Quanto mais essa miscigenação ganha contornos, maiores são as chances de isso ocorrer por meio de um universalismo. Por sua vez, este acredito em um purismo. A mistura de raças leva à degeneração e, por fim, à decadência, à inferiorização. Lentz é defensor da pureza e da superioridade da raça germânica. Para ele, o universalismo de Milkau tem por consequência uma indolência que, por sua vez, leva à decadência. Milkau possui uma visão mais generosa, sem os traços imperiosos daquilo que pensa Lentz.

O romance preocupa-se em abordar os destinos da formação da identidade do Brasil. Um país complexo e diverso como o Brasil, que tipo de inspiração deveria motivar o seu desenvolvimento? 

O romance possui uma forte fragrância naturalista, o que reforça o seu tom cientificista. Todavia, pode-se asseverar que é um naturalismo já decantado, diferente daquele de Aluísio Azevedo ou de Júlio Ribeiro, que buscavam provar uma tese com as suas respectivas narrativas. Há inúmeras descrições de eventos selvagens e violentos na obra, o que destoa com o caráter pacifista do personagem Milkau - a morte de um velho caçador que, ao ser encontrado por coveiros, é disputado pelos urubus e defendido por uma demoníaca matilha de cachorros violentos; a descrição da morte do filho de Maria (que acabara de nascer) e é devorado por porcos selvagens. A linguagem de Canaã é recoberta por uma retórica repleta de imagens bonitas; de descrições sensitivas, o que revela a maestria do escritor. Entrementes, nota-se uma dimensão dura, selvagem, imparcial, talvez, para se harmonizar com o espírito daquilo que acreditava Lentz (claro, apenas um pitaco da minha parte). Bosi fala em "imagens-sentimentos". 

O livro é repleto de uma energia sincrética. Preocupa-se em buscar abarcar a problemática típica do humano, com os contrastes exuberantes de uma natureza bela, mas imparcial. Ao mesmo tempo, nota-se a preocupação em denunciar as mazelas de um país corrupto e atrasado. Impressiona o tom crítico e satírico com que descreve as autoridades corruptas do justiça, de onde Graça Aranha era oriundo. Eram figuras que se utilizam dos cargos e do poder emanado da máquina pública para extorquir os colonos e os brasileiros pobres da região. 

Excelente leitura. A próxima será "O cabeleira", do Franklin Távora - e já começamos!

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