terça-feira, junho 29, 2021

Algumas considerações sobre "Memorial de Aires", de Machado de Assis

 



“A vida, novamente nos velhos, é um ofício cansativo”
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Machado de Assis, in “Memorial de Aires”.

                 Escrevendo a Joaquim Nabuco, Machado de Assis, no último ano de sua vida, refere-se ao “Memorial de Aires” como sendo o seu “último livro”; além disso, assevera que o escrito era “fraco e enfermo”. Enxergamos nisso mais do que é afirmado. Era o ano de 1908. Machado perdera sua doce e fiel companheira no ano de 1904. Viveria quatro anos como viúvo de Carolina. Os amigos preenchiam os nacos enormes de sua personalidade. Não tivera filhos. Não transmitira a ninguém “o legado de sua miséria”.

                Machado viveu 69 anos. Nasceu em 1839, em um arrabalde da Capital Federal. Parecia destinado ao anonimato como os tantos mulatos que lutam pela existência diariamente em um país repleto de contradições como é o Brasil. Mulato. Epilético. Obrigado a fazer pequenos trabalhos. Forçado a colocar em prática os arranjos, os malabarismos que permitem a vida do povo pobre a vencer os obstáculos. Desde cedo, aprendeu a estimar o valor das palavras. A carpir o valor enorme de cada uma delas no terreno agreste da realidade. Cedo torna-se jornalista. Aprende observando. Não desperdiça as oportunidades. Ler muito. Aquilo que absorve transforma-se em sua interioridade. O primeiro romance sai quando ele completa 32 anos de idade. Antes já excursionara no conto, gênero este que dominou como poucos, e na poesia. Com o “Memorial de Aires” foram nove romances ao todo.

                Os quatro primeiros podem ser colocados na fase experimentalista. São romances de formação. Possuem uma perspectiva romântica. A partir do quinto (“Memórias Póstumas”) brotam obras de um rigor impressionante. Aqui brota o mestre. O narrador sarcástico, onisciente, zombeteiro, crítico capaz de revelar e engenho da alma humana. Esse perfil segue o genial escritor até o seu último escrito, justamente o “Memorial”.

                Memorial é aquilo que faz referência à memória, à lembrança, a eventos já acontecidos; ou pode está ligado a um monumento que se ergue em homenagem a pessoas ou a um assunto. A palavra é polissêmica. Ao denominar “Memorial de Aires”, Machado tinha essa noção. Ele sempre disse mais do que aquilo que está repousado na superfície de cada palavra.

                O texto que Machado diz que é “fraco e enfermo” é o resultado de anotações do conselheiro Aires. A personagem regressara da Europa, de onde vinha aposentado do cargo de diplomata. As anotações que faz em forma de diário fazem jus à sua antiga profissão. Não são irônicas, zombeteiros; não se utilizam da “galhofa”. O narrador foge das polêmicas sociais. Não está à cata de fenômenos faustosos. Observa com o estoicismo daqueles que chegaram à terceira idade. Centraliza a sua atenção na viúva Fidélia, um nome incomum, retirado da única ópera escrita por Beethoven. Machado sabia como ninguém provocar esses lances cômicos, repletos de um humor inteligente.

                O outro personagem do livro é Tristão, um nome retirado de uma famosa lenda europeia; também personagem de uma ópera de Richard Wagner. O escritor já havia feito isso com “Esaú e Jacó”, outra obra repleta de polissemias.

                O interesse da personagem Aires por Fidélia surge de uma brincadeira do conselheiro com a irmã Rita. Ele observa o comportamento da então viúva Fidélia. Parece desinteressado. Demonstra uma mornidão repleta de recatos. Mas, é justamente a contínua insistência em acompanhar o que ocorre com a viúva que denuncia uma contradição.

                A fachada de curiosidade imparcial não se sustenta. Ao acompanhar o desenlace entre Fidélia e o jovem Tristão, Aires fala mais de si. Machado nessa situação revela uma das suas características – que é de ser um extraordinário estudioso da natureza humana.

                 É sempre um grandioso prazer ler Machado de Assis; uma oportunidade enorme de aprendizado. Seguimos com as nossas leituras de literatura brasileira. Seguiremos com “Cidades Mortas”, de Monteiro Lobato.

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