sexta-feira, janeiro 28, 2022

"Ran", uma verdadeira obra-prima

 

“São os deuses que choram. Nos vêem a matar uns aos outros... vez por outra, desde o início dos tempos. Eles não podem nos salvar de nós mesmos”.

Do filme "Ran". 

 

                A cena final do filme “Ran”, de Akira Kurosawa, é uma das mais belas e pessimistas da história do cinema. O diretor japonês que era um mestre das sutilezas, coloca uma pessoa cega, portando uma pequena fotografia de Buda, caminhando lentamente, arrimada por uma bengala à beira de um abismo. De repente, ela se dá conta de que à frente há apenas o vazio. Assusta-se. A tomada da cena se afasta. A poderosa música de Toru Takamitsu mistura-se marcantemente à cena, criando um belo efeito. O filme termina. A mensagem está dada: o ser humano é uma espécie de cegos à beira do abismo, sustentando-se pelo fio indefectível da religião.

                “Ran” é uma obra soberba; típica do grande diretor nipônico. É grandiosa, magnífica. É épica. Está carregada de simbologias; de uma atordoante reflexão. Um grupo habilidoso de artistas em ação e a mão de Kurosawa, que conduz os detalhes técnicos à perfeição.  

                O filme é baseado na tragédia shakespeareana “Rei Lear”, escrita em 1605. Kurosawa transpõe a história para a tradição japonesa. Hidetora Ichimonji é um venerável e respeitável patriarca de um reino poderoso, construído a partir de batalhas. Ele é respeitado pelos três filhos e por um séquito de súditos. Próximo dos setenta anos, decide dividir o seu reino entre os seus três filhos. O desejo de Hidetora era criar uma sociedade entre os filhos para que eles governassem juntos. Segundo ele, isso tornaria a condução das terras algo que duraria muito tempo. A harmonia dos três fortaleceria ainda mais os domínios conquistados.

                Sem querer contar os detalhes do filme, mas apenas descrevendo os elementos essenciais da obra, importa dizer que após a decisão, os filhos são transformados pela expectativa do poder.  Somente alguém como Kurosawa para pegar uma obra de Shakespeare - que revela tanto sobre a natureza humana - e imprimir-lhe as feições corretas. Kurosawa consegue impressionar com a atuação dos atores, a espetacular trilha sonora e a fotografia, que revela, nas tomadas de câmera, detalhes arrebatadores. As cenas de batalhas estão entre as mais belas da história do cinema, assim como já era comum em sua filmografia. “Em os sete samurais” (1954) o diretor utiliza técnicas que fariam escola; seriam praticamente obrigatórias em filmes de guerra e de ação. Em “Ran” os exércitos parecem bailar. Há uma dança da morte. E o desfecho dessa apoteose é a destruição, o caos e seus aspectos deletérios.

                Essas características são adensadas pela revelação da psicologia dos personagens. “Ran”, que significa “caos”, “tumulto”, “desordem”, é um estudo sobre a natureza humana e suas metamorfoses diante do poder. Nota-se ainda uma preocupação em fazer refletir os efeitos imprevisíveis das escolhas e de suas consequências. Demonstra ainda como certas escolhas ganham proporções inadministráveis.

O filme todo é uma cética poesia que reflete sobre o potencial de beleza, mas, ao mesmo tempo da violência, vingança e ganância pelo poder.

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