quinta-feira, janeiro 20, 2022

Sobre "Abra e Leia", de Milton Ribeiro

           

Conheço o Milton Ribeiro desde os idos de 2008. Encontrei-o após fazer escavações na rede à procura de música clássica. Achei, graças ao Google, o PQPBach. Inicialmente, fiquei boquiaberto, embasbacado com a quantidade de material disponível para baixar. Estava à procura de gravações. Àquela época, não existia Spotify e, se quiséssemos ouvir uma boa gravação, tínhamos que recorrer aos CDs (em franca perda de popularidade à época) ou aos arquivos em MP3. Uma pródiga galáxia de MP3 estava disponível no PQP Bach. Iniciei um tour de force para baixar tudo o que era possível. Muitas dessas gravações ainda estão comigo.

Aos poucos, associei a personagem PQP Bach ao sujeito Milton Ribeiro, que também conduzia um blog onde escrevia crônicas sobre assuntos diversos – entre eles, literatura, cinema e futebol. Os textos do PQP Bach estavam condimentados por um sabor histriônico; por uma fineza humorística muito peculiar. A começar pelas três letras PQP, logo em seguida, seguida de Bach. Era uma interjeição, uma impressão emotiva de alguém que se assusta após ter ouvido algo sublime e acaba verbalizando num rasgo de confissão: “P...ta que pariu, Bach!”, querendo ainda expressar: “Como você pode fazer algo assim!?” Lendo os textos do Milton, percebi que somente alguém como ele poderia fazer surgir algo com aquelas características. PQP Bach era um alter ego do próprio Milton. 

Aos poucos, fui percebendo quem era Milton Ribeiro. Encontrei-o no Facebook. Pude perceber a quantidade de amigos de que dispunha; de pessoas que o consideravam; que respeitavam seu conhecimento sobre vários assuntos ou, simplesmente, tinham em sua pessoa, alguém com a qual é sempre positivo manter uma ligação. 

Em 2022, faz quatorze anos desde que estabeleci contato com ele pela primeira vez. Nunca me encontrei pessoalmente com ele, apesar de, todas as vezes em que vou à Serra Gaúcha, passar por Porto Alegre (seu lugar de moradia) e nunca marcar um café. Certa vez, falei rapidamente com ele pelo telefone. Só isso. Outra vez, assisti, pelo Youtube, a uma palestra que ele fez sobre a escritora Lucia Berlim. Nas duas ocasiões, pude notar alguém bem humorado, que sabe expressar ideias sobre o que está se pronunciando. 

Sempre que posso, leio a sua página pessoal, que carrega o seu nome. Nos últimos tempos, ele tem pedido para que não se confunda com o perfil do famigerado e inquisidor religioso (que nada sabe de educação), o senhor Milton Ribeiro, pastor presbiteriano e ministro da educação. Sempre observei a qualidade de seus textos. Possuem densidade de conteúdo, a leveza jornalística e uma qualidade literária incontestável. Sempre houve a inescapável pergunta: quando ele publicaria algo? E, talvez, de tanto os amigos cobrarem; e por uma questão de acerto de contas consigo mesmo, Milton lançou seu primeiro livro de contos “Abra e Leia”, em 2021, pela editora Zouk. 

De início, fiquei bastante curioso para ler a obra. Para os amigos, ele disse que o livro seria vendido em primeira mão em sua querida livraria pessoal, a qual conduz com paixão e denodo, a Livraria Bamboletras. Quem o comprasse em primeira mão, teria a obra autografada. Acabei deixando a oportunidade passar. Adquiri-o na Livraria Martins Fontes, via Amazon. Quando recebi o livro, iniciei a leitura imediatamente. Não se trata de material volumoso. Os contos são curtos. Abrigam, no máximo, de duas a três páginas – com exceção de “O violista”. Resolvi ler o livro de forma vagarosa – um ou dois contos por dia. 

Após tê-lo concluído, fiquei com uma boa impressão. Alguns contos parecem acabar apressadamente, como se ele quisesse pôr um ponto final na narrativa. Outros já possuem um excelente arremate. Poderia ser comparado a uma bela costura feita em um tecido. Em alguns momentos, os textos possuem a fragrância de um texto de Luis Fernando Veríssimo. Em outros, a picardia de um texto de Nelson Rodrigues. Alguns contos me chamaram bastante atenção. Em “Muitos olhares e um longo beijo”, eu não deixei de soltar uma bela risada. O doloroso “Breve relato de aniquilação”, imprime um intranquilo volume existencial. Pensei que poderia ser um excelente início para um romance intimista; para a introdução para um livro.  No já mencionado “O violista”, nota-se a construção de um drama, tendo como arquitetura a esplêndida Sinfonia Concertante de Mozart. O texto é uma delícia. Milton não deixou passar a oportunidade de ser didático, realizando uma belíssima explicação sobre o caráter da peça. Torna-se quase obrigatório ouvi-la após ou durante a leitura. Eu não deixei de fazê-lo. 

Em “Abra e Leia” – conto que dá nome ao livro – nota-se o aspecto intertextual, ou seja, uma fina referência ao texto bíblico do Apocalipse de São João, ao “Sétimo Selo”, de Bergman, e à obra máxima do cineasta soviético Elem Klímov – “Vá e Veja”. O último conto do livro – “Anita e Belle” – está repleto do drama e do inusitado. Ao final, ficamos pensando sobre qual será a reação do moço que desceu do ônibus com a caixa. 

O autor de “Abra e Leia” demonstra claramente que tinha conhecimento sobre o que estava escrevendo. A qualidade do texto é irritantemente bem escrita. Os contos estão repletos de beleza. Há inúmeras referências ao cinema, à música, à literatura, sem qualquer afetação pernóstica. Em minha humildade, penso que alguns contos poderiam ter sido “melhor” cuidados. Eles acabam de forma abrupta. Deixam no ar algo inconcluso; o desenvolvimento interno deixa a desejar. Todavia, penso que, talvez, tenha sido a intenção do seu autor. Milton sabe muito bem o que é um conto. Reconhece a forma. Talvez tenha desejado, simplesmente, presentear o leitor com a fórmula daquela percepção das coisas singelas que fazem o cotidiano. A objetividade é uma ferramenta que torna as realizações possíveis. Por isso, a ideia de ‘abrir e ler” e se impressionar com o inusitado.

São Paulo-SP, 17 de janeiro de 2022. 

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