sábado, março 19, 2022

"Om Bom Crioulo", de Adolfo Caminha. Algumas considerações.


 “... a natureza pode mais que a vontade humana”. Adolfo Caminha, em “O bom Crioulo”.

 

            “O Bom Crioulo” foi a primeira obra visitada da série de onze livros de literatura brasileira que elegi para ler ao longo do ano de 2022. Trata-se de livro escrito no ano de 1895, às vésperas do século XX. Adolfo Caminha, nascido no Ceará, no ano de 1867, morreria de forma precoce, aos trinta anos, no ano de 1897. Ou seja, apenas dois após a publicação da polêmica obra.

            Em 1895, o Brasil ainda sentia o calor de dois eventos importantes que, praticamente, definiriam o arranjo social e político do país até o ano de 1930. Em 1888, acontecera a Abolição da escravatura, que havia mudado oficialmente as relações sociais e econômicas no país. Já em 1889, acontecera o golpe das aristocracias rurais e dos militares que pôs fim ao Império. Apesar desses relevantes eventos, o país permanecia eminentemente sob o conservadorismo e o patriarcado. Certos assuntos – entre eles o homossexualismo – permaneciam sob um véu denso de reprovação social. Todavia, o papel da literatura se espraia, ganha contornos eloquentes, justamente nesse sentido, pois o seu compromisso transcende o posicionamento conservador ou não da sociedade.

            Do ponto de vista das produções estéticas, o país havia ultrapassado o fenômeno romântico de Joaquim Manoel de Macedo, Bernardo Guimarães e José de Alencar. Havia o Realismo pondo em alto relevo as contradições do país; revelando a mesquinhez das elites; seu moralismo de fachada; as demandas de um país que precisava se definir. Machado de Assis é o mestre por excelência dessa pujante “denúncia” do Realismo.

            Para além do Realismo, surge também o Naturalismo, que realça ainda mais as cores do mundo real, radicalizando-o. Os intelectuais, munindo-se de teses científicas, haviam criado supostos que consideravam o homem apenas como um joguete dos desejos e pulsões inconscientes. A natureza possuía leis inexpugnáveis, inexoráveis. Sendo assim, os comportamentos dos indivíduos eram determinados pela hereditariedade, pelo meio e o momento em que viviam, aquilo que Alfredo Bosi chama de “fatum”, ou seja, uma força irresistível que determina o destino de cada ser humano.

            Havia um cenário filosófico que estimulava essa compreensão da realidade. Importante mencionar o evolucionismo de Charles Darwin. Há um elemento fisiológico que leva ao realce dos instintos animalescos, fazendo com que o mais forte prevaleça. É muito comum nesse sentido, a importância que o sexo assume nesse debate. O Positivismo e o Determinismo também são correntes filosóficas que influenciaram o Naturalismo enquanto corrente estética. No Brasil, Aluísio Azevedo, Júlio Ribeiro, Domingos Olympio e Adolfo Caminha – entre outros – são nomes importantes da corrente naturalista.

            Em “O bom Crioulo” aparece a figura do ex-escravo Amaro (“amargo”), também conhecido como o “Bom Crioulo”. Importante observar o adjetivo “bom” utilizado pelo narrador. A noção era de que o “crioulo” (negro nascido na América) era, em regra, um sujeito primitivo, dono de um comportamento animalesco; que gozava de um prestígio negativo. Mas, Amaro era “bom”, ou seja, mostrava-se como alguém que quebrava essa regra, o que cria um antagonismo, uma exceção. Ele recebeu essa alcunha por ser alguém forte, comprometido com o trabalho e diligente.  Amaro trabalho em uma corveta, um navio da Marinha. É descomunalmente forte.

            Vale observar que, apesar de os negros terem conseguido a suposta liberdade oficial após a Abolição, ainda viviam numa condição subalterna na sociedade. Havia muitos negros na Marinha. Uma das práticas que gerava muita indignação eram as chibatadas aplicadas nos marinheiros considerados insubmissos. A Revolta da Chibata (1910) foi um desdobramento da indignação dos marinheiros, tendo como protagonista o negro João Cândido. Adolfo Caminha havia sido da Marinha e possuía uma posição contrária à prática das chibatadas. Quem aplicava as chibatadas eram os oficiais brancos que puniam negros e mulatos.

Adolfo Caminha

            Amaro é uma figura apresentada como forte e bom. Todavia, possuía problemas com a bebida. Todas as vezes que bebia, transformava-se em alguém com impulsos incontroláveis. A personagem além dessas características é homossexual. Nesse sentido, a obra ganha uma relevância grandiosa, o que fez com que o seu autor fosse alvo de acerbas críticas. Amaro apaixona-se pelo grumete Aleixo, um adolescente de quinze anos – branco, de cabelos loiros, olhos claros, possivelmente, descendente de europeus. Adolfo Caminha descreve a paixão que Amaro, de trinta anos, alimenta pelo jovem efebo. E, nesse sentido, é oportuno refletir sobre a polêmica de um relacionamento homossexual e inter-racial, de um homem com um adolescente branco e efeminado no final do XIX.

            “O Bom Crioulo” é considerado o primeiro romance da América Latina a tratar da temática homossexual. Na Inglaterra, Oscar Wilde havia escrito, em 1890, “O Retrato de Dorian Gray” que também põe em evidência o tema da sexualidade. O próprio Wilde experimentou na pele a força do conservadorismo. Em 1895, ele foi alvo de três processos por atividades homossexuais, tendo permanecido preso por dois anos (1895-1897), com a pena de trabalhos forçados.

            O romance de Adolfo Caminha tem um desdobramento naturalista. Amaro cumpre o seu destino como não poderia deixar de ser. Seu infortúnio é agudizado pela descoberta da traição de Aleixo com a ex-prostituta D. Carolina. Nota-se aqui a bissexualidade de Aleixo. Após um período doente, Amaro descobre o relacionamento dos dois e empreende uma ação tresloucada. O romance termina sob o signo da tragédia.

            Pessoalmente, posso afirmar de que gostei da leitura do livro. Texto fácil; bom de ser lido. Narrador em terceira pessoa, onisciente. Revela muitos aspectos da vida das metrópoles brasileiras, principalmente a Capital Federal no final do século XIX, assim, por exemplo, como é “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo, outro importante romance naturalista. Além disso, lança luz sobre um debate importante. Se até hoje falar de homossexualismo gera polêmica, imagine esse debate sendo feito no final dos século XIX em um país de coronéis e beatos como o Brasil?

Um comentário:

Shostak disse...

Esta novela me gustó bastante. La leí en la edición española (Editorial Egales). Siempre me han atraído las obras literarias que plantean el clásico conflicto entre Libertad versus Autoridad y en esta novela de Caminha también aparece reflejado. No deja de ser tópico del conflicto entre "civilización y barbarie". Amaro ansía la libertad pero siempre está preso, siempre se le recuerda que es un esclavo. El tema de la negritud está más marcado en las novelas decimonónicas americanas que en las europeas. Eso me gustó de Caminha: la valoración y el refuerzo positivo del hombre negro en la sociedad brasileña (y americana en general). Una sociedad en plena transformación social y en crisis casi constante. Tiene su estilo naturalista y, como bien dices, me parece una obra valiente por tratar temas como el homosexualismo.

Una duda: ¿se lee esta novela en la Enseñanza Secundaria de Brasil? Me parece una obra corta, fácil de leer y que plantea cuestiones importantes para tratar con los adolescentes. Aunque me temo que, como en España, con la nueva ola neoconservadora y el auge de las políticas extremistas sería polémico. A esto habría que sumarle que los adolescentes en España apenas leen, je, je.

Saludos,
Miguel
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Eu gostei bastante dessa novela. Li-o na edição espanhola (Editorial Egales). Sempre me senti atraído por obras literárias que colocam o clássico conflito entre Liberdade versus Autoridade e neste romance de Caminha isso também se reflete. Continua a ser um tema do conflito entre "civilização e barbárie". Amaro anseia pela liberdade, mas está sempre preso, sempre é lembrado de que é um escravo. O tema da negritude é mais marcante nos romances americanos do século XIX do que nos europeus. Gostei disso em Caminha: a valorização e reforço positivo do negro na sociedade brasileira (e americana em geral). Uma sociedade em plena transformação social e em crise quase constante. Tem seu estilo naturalista e, como você diz, me parece um trabalho corajoso para lidar com questões como a homossexualidade.

Uma pergunta: esse romance é lido no Ensino Médio no Brasil? Parece-me uma obra curta, de fácil leitura e que levanta questões importantes para lidar com adolescentes. Embora tenha medo de que, como na Espanha, com a nova onda neoconservadora e a ascensão de políticas extremistas, seja controverso. A isso deve-se acrescentar que os adolescentes na Espanha dificilmente lêem, heh, heh.

Cumprimento,
Miguel