terça-feira, julho 26, 2022

As possibilidades da língua

Enquanto lia o romance “Água de barrela”, de Eliana Alvez Cruz. Encontrei uma palavra até então desconhecida para mim – “minete”. Achei-a diferente. Conta-nos a narradora que havia um certo personagem denominado “Nego Arigofe”. Pela descrição feita sobre essa exótica figura, faz lembrar um daqueles apimentados personagens criados por Jorge Amado. De acordo com a narração, “Arigofe” “tinha a fama de praticar o melhor ‘minete’ de Salvador e quiçá da Bahia".

            Eliana insere um aposto explicativo para que o leitor saiba o significado desse termo francófilo – “sexo oral em mulheres” (p.270). Achei curiosa a palavra e fui à cata de novas explicações. Encontrei o termo latim “cunilíngua” – que eu já conhecia. E, por fim, encontrei uma deliciosa crônica do jornalista Sérgio Rodrigues alargando ainda mais as possibilidades da língua (ops! desculpe o trocadilho). O texto traz mais do que uma explicação – insere elementos eruditos, extraídos de um acontecimento ocorrido em Portugal. Vale a pena a leitura. O título já diz muito sobre o texto. Abaixo, o texto da Folha

 O minete e a língua

Estávamos na vila medieval de Óbidos, em Portugal, terra da ginja, para participar de um festival literário. Na roda formada por homens e mulheres de nacionalidades lusófonas diversas, o escritor angolano José Eduardo Agualusa resolveu pegar no pé de uma lacuna vocabular brasileira.

“No Brasil não existe minete”, declarou, para espanto e indignação da ala feminina do grupo. Embora conste que em certas regiões do país a palavra não seja desconhecida, Agualusa tinha lá sua razão, como comprova o fato de que poucos leitores desta coluna saberão o que vem a ser o tal minete.

A confusão proposital entre a palavra, que de fato não existe para a maioria dos nascidos aqui, com a coisa, que tem existência vibrante para muita gente, era parte da piada. Uma piada que exigia resposta rápida do único brasileiro presente, ou seja, eu. 

Estava em jogo nada menos que a dignidade nacional, ainda que em sua versão simbólica de jogo de salão.

Para que a história faça sentido será preciso explicar logo o que é minete, um substantivo que, naquele momento, eu mesmo acabava de conhecer. Chega de preliminares: minete é sexo oral em mulheres. O contraponto feminino do boquete. 

Em português brasileiro, um silêncio, uma lacuna que a gozação de Agualusa diante da plateia escandalizada tornava constrangedora. Quando não uma lacuna, no máximo um daqueles substantivos informais feitos na marra com o particípio —no caso, do verbo “chupar”. Mas isso não livraria nossa 
cara coletiva naquela hora.

Por que, afinal, não temos um substantivo bom e honesto para nomear ato tão relevante? Logo nós, com nossa fama —não inteiramente justa, mas insuflada por décadas de campanhas turísticas oficiais— de povo liberadão e de sexualidade à flor da pele.

Não será verdade que a exuberância vocabular sempre acompanha o peso cultural das coisas, como sugerem os incontáveis nomes que a cachaça acumula país afora? Se for verdade, o que essa fenda pudica em nosso vocabulário revela? Em resumo: custava tanto assim termos importado “minete”?

Seria uma mentira cômica dizer que, sendo um povo erudito, “cunnilingus” resolve a questão para nós. Além de ser pedante, feioso e de uso raro, o termo latino tem sonoridade que pode provocar certos 
mal-entendidos anatômicos.

Tudo ao contrário de “minete”, um vocábulo simpático e tão popular em Portugal quanto na África lusófona. Vem do francês “minet”, ou mais provavelmente de seu feminino, “minette”. Quer dizer gatinho ou gatinha e tem sentido lúbrico por associação óbvia com a lambeção apreciada pelos bichanos.  

Caros compatriotas: naquele momento difícil, eu precisava de uma iluminação divina, nada menos que isso, e tenho o prazer de relatar que ela veio. Ponderei à pequena audiência lusófona multinacional que nem sempre a ausência de uma palavra traduz desinteresse ou falta de apreço.

Às vezes é o contrário: por respeitar demais alguma coisa, por nos sabermos pequenos e indignos diante de sua grandeza, nos recusamos a reduzi-la a um nome. “Vejam o caso de Deus. YHWH, o impronunciável tetragrama hebraico, é um exemplo.” Não sei se colou. Fez o pessoal rir, e isso bastava”.

 

P.S. O humorista Gregório Duvivier escreveu na Folha uma coluna, ano passado, tratando também sobre o "minete". 

Um comentário:

Shostak disse...

Hola, desde Madrid.

Me ha encantado esta entrada. En el español de España tampoco existe una palabra para el "cunilingus". En cambio, en el español de América, sobre todo en Uruguay, Argentina y Bolivia sí existe la expresión "hacer la mineta a una mujer", que, como bien has explicado, proviene del francés.
En España se usan los giros o las expresiones: "chupar/lamer/comer el XXX".
En el lenguaje folclórico, popular y literario también existe el término "minino" o "misino" para referirse al gato y, por extensión, a los genitales femeninos.

Me ha resultado curioso que en Portugal sí exista y en España no. O sí se conozca en Argentina o Uruguay y no en Brasil.
Las paradojas entre países vecinos: tan cerca y a la vez tan lejos.

Felicidades por el blog y por "O ser da música".

Saludos
Miguel
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[Trad. al portugués vía google translator]

Eu amei este post.
No espanhol da Espanha não há palavra para "cunilingus". Por outro lado, no espanhol da América, especialmente no Uruguai, Argentina e Bolívia, existe a expressão "faça o minet a uma mulher", que, como você explicou, vem do francês.
Na Espanha, são usadas voltas ou expressões: "chupar / lamber / comer o XXX".
Na linguagem folclórica, popular e literária também existe o termo “minino” ou “misino” para se referir ao gato e, por extensão, à genitália feminina.

Achei curioso que em Portugal exista e em Espanha não. Ou se é conhecido na Argentina ou Uruguai e não no Brasil.
Os paradoxos entre países vizinhos: tão próximos e ao mesmo tempo tão distantes.

Parabéns pelo blog e por "O ser da musica".

Cumprimentos.
Miguel