A década de 30 do século XX foi
uma das mais ricas para a literatura brasileira. Viveu-se o que se convencionou
chamar de Segunda Geração Modernista (1930-1945). A literatura produzida por
aqui desenvolveu o seu engajamento. Liberdade para criar e reconhecer as
contradições brasileiras ganharam forma. Tanto a poesia quanto a prosa assumiram
uma posição de denúncia. Há nomes importantes na poesia – Carlos Drummond de
Andrade, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Murilo Mendes. Na prosa, também se
observa a força, a pujança das narrativas, uma preocupação com a crítica à
condição do homem numa sociedade repleta de duros antagonismos.
No Nordeste, há nomes que
impressionam pelo aspecto prolífico da produção. As questões regionais passaram a ganhar visibilidade. A seca, as desigualdades, o jogo político que fazia com o poder
pertencesse a certas famílias – as velhas oligarquias, fruto da formação social
e econômica do país -, são expostos por Graciliano Ramos, José Lins do Rego,
Jorge Amado, Amando Fontes, entre outros.
Pode-se observar ainda um
movimento que tende a revelar os dramas do homem urbano. Os escritores
apontavam as lutas do homem da cidade. Suas dissonâncias. Seu mal-estar
psicológico. A urbe capitalista é o espaço em que o ser humano encontra-se
exposto às ambivalências; à solidão; ao aparente; à angustia. Os gestos não definem um
ensaio de definição.
Erico Veríssimo foi certamente
um mestre nesse sentido. “Caminhos cruzados” foi o seu segundo romance, escrito
no ano de 1935. Veríssimo à sua maneira, com uma prosa ágil, despojada, dedica
atenção aos homens e mulheres da Porto Alegre da primeira metade do século XX. Erico
descreve com inconformismo a realidade das vidas humanas embrutecidas ou
vulnerabilizadas pela luta no palco social. Ninguém está livre da crise. Seu texto
é imensamente humano.
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Erico Veríssimo. |
A paisagem urbana esconde os
dilemas. O romance possui vários nichos narrativos, que funcionam como uma
novela. Cada capítulo dedica-se a uma personagem. Vamos conhecendo um a um;
solidarizamo-nos com um; tomamos aversão a outros. O autor parece apresentar um
prédio para alguém que passa pela rua. Ele aponta o seu dedo e vai descrevendo
as histórias que povoam cada apartamento. Em alguns deles, notam-se a
exuberância, o luxo, a vaidade. Em outros, a singeleza, a humildade, o despojamento.
Como diz Antonio Cândido, é como se o escritor dividisse as personagens em dois
grupos: o grupo “A”, formado pelos ricos; e o grupo “B”, formado eminentemente
pelos pobres.
Veríssimo denuncia as
desigualdades sociais e a indiferença. Em um período sensível da história
nacional, que estava na iminência do golpe de Estado de Vargas, não faltou quem
visse intenções revolucionárias na pena do escritor.
O gaúcho, também autor de
“Incidente em Antares”, utiliza a técnica do contraponto, segundo ele,
apropriada da obra do inglês Aldous Huxley. É curioso perceber como essas
personagens diversas e contrastantes se aproximam e se cruzam pela urdidura da
vida social. É nesse ponto, que Veríssimo realiza o movimento primoroso do
acerto, pois, ao estabelecer essas conexões, ele captura a imagem de uma
sociedade inteira.
O romance gerou escândalos e
protestos. Os conservadores ciosos dos valores da família, enxergaram
imoralidades. Moacyr Scliar afirma que, quando adolescente, a leitura do livro
era terminantemente proibida. Despertou também furor político, pois a obra foi
acusada de disseminar o comunismo. Sim. Essa palavra tão incompreendida; tão onipresente no imaginário da classe média brasileira; essa palavra cujo conceito é desconhecido por muitos.
Ao lermos o romance, não notamos nada disso.
Observa-se que Erico é habilidoso em realizar uma crítica firme contra um país
que invizibiliza parte de sua população. Se Erico suscitou debates, é pelo fato
de sua obra está entretecida pelos limites impostos pelo mundo material. As
personagens do livro são motivadas pelo sonho, pela esperança, mas têm suas
intenções estilhaçadas pelo mundo real. Nada mais atual que isso. E nesse
sentido, este romance do autor gaúcho ainda continua dizendo muito.