Terminei
a leitura do livro de contos “Antes do baile verde”, da escritora paulista
Lygia Fagundes Telles. Desde que terminei o livro, fui acometido por um grande
interesse por outros textos lygianos. Esse desejo é uma forte reverência
resultante do contato com a literatura sob medida da autora de “As meninas”.
Lygia, morta no início do ano de
2022, aos 103 anos de idade, é uma das autoras mais singulares das letras
brasileiras do século XX. E, por extensão, pode-se afirmar que também o é da
grande literatura do século XX. Seu texto primoroso é feito sob medida. Não há
desperdícios. As palavras estão amarradas, urdidas, alinhavadas em feixes de
ideias. Em sua escrita, não existem sobras. Tudo é por demais preciso e
singelo. A impressão transmitida pela sua escrita é a de que ela sentou à mesa
e, em trinta minutos, escreveu - sem qualquer transpiração – aquilo que lemos.
Lygia é a elegância. A exuberância.
Nascida na capital paulista, sua
vida representou a quebra de padrões. Ainda
muito jovem – e de beleza física invulgar – ingressou na tradicional Faculdade
de Direito do Largo do São Francisco. Dos quase trezentos aprovados no ano em
que passou no processo seletivo, apenas seis destemidas mulheres contrastavam a
paisagem no rígido ambiente dominado por homens. Em alguns momentos, havia o
questionamento por parte de alguns machos, explicitando o que a maioria
pensava: “O que vocês estão fazendo aqui?” Tudo parecia ser feito para que as
mulheres permanecessem estáticas em espaços de inamovibilidade e
invisibilidade. Lygia quebrou esses padrões sendo, por exemplo, casada por duas
vezes, passando em concurso público (que lhe deu liberdade econômica) e
publicou livros.
Ainda muito jovem, começou a
escrever contos. Orientada por um julgamento implacável, afirmaria mais tarde
de que se tratava de textos juvenis, inexperientes, apoucados, que não deveriam
distrair o leitor. Para ela, a relação autor/leitor deve ser de respeito,
reverência. Antônio Cândido disse algo definitivo a respeito da obra de Lygia.
Em sua concepção, a guinada que a levou ao amadurecimento, deslocando-a para a
galáxia dos grandes escritores se deu com o lançamento do romance “Ciranda de
Pedra”. Os nomes escolhidos para nomear os seus textos também constituem um
nível de perfeição – “A estrutura da bolha de sabão”, “As horas nuas”,
Seminário dos ratos”, “A disciplina do amor”, “Antes do baile verde”. Os nomes
são sinestésicos, esteticamente delicados, capazes de revirarem a imaginação.
“Antes do baile verde” é uma das
obras mais importantes da escritora. Lançado em 1970, o livro reúne 18
preciosos contos, escritos em um período de vinte anos (1949-1969). Alguns
desses contos estão entre os escritos mais conhecidos da autora. É caso, por
exemplo, do conto que inspirou o livro “Venha ver o por-do-sol”; vale ainda a
menção de “Natal na barca” e o “Jardim selvagem”. São criações literárias que
transcendem a condição do indivíduo numa sociedade, permeado por eventos
psíquicos, a maior parte deles inconscientes, que os conduzem a situações
inopinadas, extremas. O texto lygiano capta as fagulhas, os lances indecisos,
indivisos, incongruentes; os gestos misteriosos, contidos a priori, mas que acabam se tornando em epifania.
Lygia sabe explorar os vãos onde
estão as emoções das personagens. Ela não faz insinuações grandiloquentes. Sua
habilidade se fixa na exploração dos pequenos gestos; para insinuações
comedidas. Como afirma o professor Antonio Dimas, Lygia é uma escritora com
hábitos felinos. Seus passos são moderados, cautelosos, medidos. Ela acumula
detalhes de uma maneira quase imperceptível. Cria camadas de fatos, de
contradições, silêncios, medos. Põe tudo diante do leitor e encerra o conto.
Como um felino, ela deixa a sua marca com unhas retráteis em nossa imaginação.
Uma fisgada breve, leve, mas que nos faz sentir.
Carlos Drummond e Lygia Fagundes - um galáxia de literatura |
No conto “O menino”, Lygia faz sucumbir os sonhos mais inocentes de uma criança. A masculinidade juvenil, permeada por emoções edipianas, vai ao chão. É cruel assistir a tudo isso. A sua tentativa de ser mais maduro do que é: “Pô! Homem não usa perfume! ” Para ele, sua mãe é a perfeição. Ele a exibe. Ela é um patrimônio. Seu orgulho. Deseja que os colegas a vejam. Invejem-no. Todavia, a cena que constatou no cinema, foi o suficiente para terminar com as suas fantasias. A volta para casa é a inversão dos sentimentos da ida – “Saiu crianças e voltou homem”.
Ao encontrar o pai, fica
evidente a tristeza. O menino olha-o, na sala, lendo o jornal. “O menino
encara-o demoradamente. Aquele era o pai. O pai. Os cabelos grisalhos. Os
óculos pesados. O rosto feio e bom”.
- “Pai... – murmurou,
aproximando-se. E repetiu num fio de voz: - Pai...”
- “Mas, meu filho, que
aconteceu? Vamos, diga!”
- “Nada. Nada”.
Fechou os olhos para prender as
lágrimas. Envolveu o pai num apertado abraço!
A atitude do narrador é
excessivamente fria. Como dito anteriormente, tudo parece frágil, mas está eivado
pela própria cruel da própria vida. O mundo não possui as tinturas da alegria
da fantasia apenas. Há o lado insuportável da maldade, da feiura. Até mesmo a heroína, a agente que constitui o
modelo mais alto de perfeição para uma criança – sua mãe – pode ser canalha.
Atroz. Inclemente. Hedionda.
Quando se ouve a fala da
escritora nas entrevistas que dava, notamos sempre o tom de entusiasmo.
Todavia, mesmo com toda essa leveza, com a fala carregada por cintilações de
bom-humor, seus textos são rios subterrâneos com o potencial de provocar
inundações. Afinal, a vida, no fundo, deve ser isso: uma paisagem ensolarada,
com um rio plácido, que pode mudar as características a depender dos humores do
tempo.
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