segunda-feira, julho 31, 2023

"As meninas", de Lygia Fagundes Telles

 

 

Terminei, há semanas, “As meninas”, de Lygia Fagundes Telles. Trata-se de uma das leituras que resolvi realizar ao longo do ano de 2023. Confesso que o livro somente me capturou da metade para o final.

“As meninas” é um dos romances da escritora paulista. É o seu livro mais famoso; aquele que alcançou maiores ressonâncias críticas e repercussões. Escrito em um período sensível da história do Brasil, “As meninas” é um livro de coragem porquanto problematiza uma série de temas tidos como tabu naquele período conturbado de nossa história. O livro foi publicado em 1973. Àquela altura, Lygia já se encontrava com 55 anos de idade. Era uma intelectual respeitada. Não precisava provar nada a ninguém. Sendo assim, o livro é uma prova cabal do papel dos intelectuais em um período de repressão. A onipresença do controle da Ditadura Militar, não impediu que o livro eclodisse como um destemido e ousado estampido. Talvez – e isso é apenas uma suposição – o censor não tenha conseguido apreender o intrincado enredo da obra, com aquelas constantes idas e vindas do fluxo de consciência das personagens.

“As meninas” é uma obra que foge a determinismos. Lygia se utiliza de um artifício, que permite que os leitores conheçam o momento histórico em que os eventos ocorrem a partir do ponto de vista das personagens – Lorena, Lia e Ana Clara. As três são imensamente diferentes. Possuem densidades e personalidades heterodoxas. É possível notar – a partir da vocalização dos anseios de cada uma delas – que se está diante dos anseios dos jovens daquela geração.

Interessante que Lygia tenha resolvido dar destaque a três figuras femininas, colocando em evidência a voz das mulheres. Naquela sociedade constrita pelo controle e com papéis definidos, as mulheres (as meninas) tinham uma mensagem importante; alimentavam sonhos; inquietações; desejos; medos; vaidades; possuíam uma vontade de poder que estava para além das convenções mesquinhas do conservadorismo rasteiro, propugnado por certos segmentos da sociedade. Cada uma das personagens, representava a verbalização sobre algo:

Lorena – era a filha da burguesia; rica, possuía gostos bem diferentes. Culta e virgem, sua grande ânsia era entabular um tórrido caso de amor com um médico casado e mais velho que ela, que recebe a alcunha de M.N.

Lia – é a intelectual do grupo. Seu engajamento é explícito. Oriunda do Nordeste, mete-se em organizações clandestinas a fim de combater o horror patrocinado pelos militares. Filha de um ex-militar nazista, Lia vive a angústia de saber que o namorado está preso.

Ana Clara – é a personagem mais nebulosa. Sua soturna personalidade, faz com que Lia e Lorena chamem-na de “Ana Turva” – um trocadilho, já que de “claro” ela não tinha nada. Ana é mais bonita das três. Parece luminosa por fora, mas existem noites misteriosas em seu interior. Seu namorado é um traficante e ela é viciada em drogas.

Lygia realiza enormes digressões ao longo da obra. Às vezes, a história é contada em primeira pessoa; mergulha-se na cabeça das personagens; e elas assumem o protagonismo sobre si mesmas. Em seguida, ela utiliza o discurso indireto livre. Ou seja, o narrador passa a conduzir a história sob o seu ponto de vista, assumindo a descrição dos meandros psicológicos de cada personagem.

Alguns temas surgem no enredo do livro, explicitando a coragem da autora: uso de drogas – uma das personagens é viciada. Sexo – as três conversam abertamente sobre sexo; menciona-se a masturbação feminina. Em uma época em que se pregava a pureza das mulheres e havia uma noção vigente de que as mulheres eram tímidas e frígidas, Lygia subverte o consenso. Suicídio – trata-se de um tema que gravita em torno da história de uma das personagens. O terror da Ditadura – há a descrição pormenorizada de uma sessão de tortura. Vale mencionar que à época, havia uma noção pública de que a tortura e o sumiço de prisioneiros políticos existiam, mas era um assunto velado. Lygia de forma destemida, decide abordar com desassombrada galhardia o assunto.

“As meninas” é um livro que transmite uma noção de inquietação – os jovens agem, são ousados, leves e densos, porém carregados de ânsias, inseguranças e muitos sonhos. É como afirma uma das personagens, explicitando a ética que estrutura o desejo dos jovens: “Se a gente tem vontade, tudo é bom”.

Abaixo, a descrição da sessão de tortura:

Quero que ouça o trecho do depoimento de um botânico perante a justiça, ele ousou distribuir panfletos numa fábrica. Foi preso e levado à caserna policial, ouça aqui o que ele diz, não vou ler tudo: Ali interrogaram-me durante vinte e cinco horas enquanto gritavam, traidor da pátria, traidor! Nada me foi dado para comer ou beber durante esse tempo. Carregaram-me em seguida para a chamada capela: a câmara de torturas. Iniciou-se ali um cerimonial frequentemente repetido e que durava de três a seis horas cada sessão. Primeiro me perguntaram se eu pertencia a algum grupo político. Neguei. Enrolaram então alguns fios em redor dos meus dedos, iniciando-se a tortura elétrica: deram me choques inicialmente fracos que foram se tornando cada vez mais fortes. Depois, obrigaram-me a tirar a roupa, fiquei nu e desprotegido. Primeiro me bateram com as mãos e em seguida com cassetetes, principalmente nas mãos. Molharam-me todo, para que os choques elétricos tivessem mais efeito. Pensei que fosse então morrer. Mas resistia e resisti também às surras que me abriram um talho fundo em meu cotovelo. Na ferida o sargento Simões e o cabo Passos enfiaram um fio. Obrigaram-me a então a aplicar os choques em mim mesmo e em meus amigos. Para que eu não gritasse enfiaram um sapato dentro da minha boca. Outras vezes, panos fedidos. Após algumas horas, a cerimônia atingiu seu ápice. Penduraram-me no pau-dearara: amarraram minhas mãos diante dos joelhos, atrás dos quais enfiaram uma vara, cujas pontas eram colocadas em mesas. Fiquei pairando no ar. Enfiaram-me então um fio no reto e fixaram outros fios na boca, nas orelhas e mãos. Nos dias seguintes o processo se repetiu com maior duração e violência. Os tapas que me davam eram tão fortes que julguei que tivessem me rompido os tímpanos: mal ouvia. Meus punhos estavam ralados devido às algemas, minhas mãos e partes genitais completamente enegrecidas devido às queimaduras elétricas. E etcétera, etcétera.

 

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