quinta-feira, janeiro 11, 2024

"Quarto de Despejo", de Carolina Maria de Jesus. Algumas observações após a leitura

 

“É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la”

Carolina Maria de Jesus

 

“A minha [vida], até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro”.

Carolina Maria de Jesus

 

Carolina Maria de Jesus é uma das figuras mais carregadas de simbolismos da literatura brasileira. Comparo-a a outro negro: Lima Barreto. Assim como o escritor carioca, Carolina foi uma escritora que carregou atrás de si os contrastes de um país periférico e que é cruel com os negros e com os pobres. Existe uma diferença crucial – claro, em desfavor de Carolina -, Lima era homem e mais letrado. Leu Dostoiévski, considerava-se anarquista. Carolina mal concluiu o que hoje é equivalente à segunda série. Lima foi capaz de ficcionalizar os contrastes de um país atrasado com uma literatura afiada e satírica em livros como “O triste fim de Policarpo Quaresma”, “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, “Clara dos Anjos” ou na sátira “Os bruzundangas”.

Todavia, existe uma linha comum que os comunica. Os dois eram negros e suportaram o peso intransigente do preconceito. Em vida, Carolina conseguiu um certo reconhecimento; no caso de Lima, o reconhecimento só veio após o falecimento. Hoje, mais de cem anos da morte de Lima, há um pleno reconhecimento de sua monumental obra. A sociedade analisada de maneira tão precisa por ele continua com suas tintas de preconceito, mandonismo e desigualdade. Todavia, a ideia não é falar sobre o Lima, mas sobre a leitura do extraordinário “Quarto de despejo – diário de uma favelada”, de Carolina Maria de Jesus.

A trajetória de Carolina Maria de Jesus foi marcada por altos e baixos. De origem humilde, nascida na pequena cidade de Sacramento, em Minas gerais, nome que já evoca uma semântica de mistério. Mulher. Preta. Pobre. Trabalhadora informal. Como tantas mães desse país de homens que não se responsabilizam com os filhos que ajudam a colocar no mundo, Carolina foi mãe de três filhos. Foi trabalhando na casa de uma família, que conseguiu estudar até a segunda série. É como se tivessem dado a ela lentes para enxergar o mundo em que vivia. Foi por meio dessa pequena instrução que Carolina pôde acessar uma dimensão que é resultado de privilégio – ou seja, a dimensão do saber. 
 

Carolina no seu momento de leitura.
 
Nota-se em seu texto os traços da alfabetização realizada pela metade. Há erros crassos de ortografia, o que indica claramente a dificuldade de manusear o código expresso na gramática. Carolina cometia desvios aparentemente óbvios da norma-padrão – “maguar”, ao invés de “magoar”; ou ainda “visinho”, ao invés de “vizinho”. Esses desvios da norma-padrão não devem ser vistos como construções que tiram o mérito da escrita de Carolina. Na verdade, eles enunciam veracidade e força estética ao seu texto. É voz da favela. É voz dos insubmissos. É a voz da fome, da miséria; daqueles que não são, mas que desejam ser.

A sensibilidade de Carolina é algo único na literatura brasileira. É importante declarar que a sua literatura é marginal. É a declaração incontida daqueles que sabem o poder que a palavra possui. O texto de Carolina provoca o tempo inteiro. Ela é a prova materializada de como dizer a palavra possui uma potência criadora. Paulo Freire diz que “não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”. Por isso, enunciar a palavra – mesmo que “ferindo” as convenções gramaticais – é algo tão revolucionário. Seguindo ainda com Freire: “Não basta saber que Eva viu a uva. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho”. Ou seja, Carolina poderia ler com muita dificuldade que “Eva viu a uva”. Mas ela sabia muito bem que lugar Eva ocupava e a relação social que ela estabelecia com a uva, pois ela sabia qual o papel que ocupava, sendo negra, mãe de três filhos e sozinha.

A leitura da obra de Carolina nos fornece uma noção muito exata de sua compreensão política. Os diários que compõem o livro foram escritos durante o governo de Juscelino Kubistchek (1956-1960). A escritora possui uma posição bastante crítica em relação às políticas de JK. O presidente que criou Brasília havia estabelecido um lema audacioso: “Cinquenta anos em cinco”. Buscava-se a modernização do país. Todavia, o país ainda era imensamente desigual. O fluxo intenso de migração das regiões mais pobres do país era uma realidade. A própria Carolina faz referência a “baianos” na obra, a quem ela chama de “nortistas” a fim de enunciar a existência dos migrantes da região Nordeste. Ela mesma viera do interior de Minas Gerais para trabalhar como empregada doméstica.

A palavra, assim, representou uma forma de contar, de representar a sua própria realidade. É nítida a diferenciação que ela mesma estabelece com os outros moradores. A escrita era algo incomum na sua comunidade. Havia certo escárnio e jogos verbais a fim de zombar de Carolina pelo fato de ela escrever. Carolina era uma mulher teimosa, que sabia o valor dos livros e da escrita.

Moradora da favela Canindé, às margens do Tietê, onde hoje passa a rodovia que recebe o mesmo nome, Carolina foi residir numa comunidade em que as dificuldades sociais eram alarmantes. O desejo de sair da favela era algo que ela sempre manifestava. As descrições feitas por ela indicam o quanto as condições de saneamento eram adversas na comunidade. “Como é horrível pisar na lama”. “As horas que sou feliz é quando estou residindo em castelos imaginários”.

A rotina de catadora de papel, ferro velho e outros objetos tirados do lixo era uma espécie de mito de Sísifo. Todos os dias ela saía para catar objetos a fim de conseguir alguns poucos cruzeiros para comprar aquilo que ela chamava de “ração”. O dinheiro era insuficiente para alimentar ela mesmo e os três filhos. Cada dia ela “rolava uma pedra”. Conseguia um valor pequeno, inexpressivo, momentâneo. A monta insignificante mal dava para satisfazer todas as refeições do dia. Vários foram os dias em que ela e os filhos foram dormir sem comer. Seu texto retrata essa roda-viva, esse movimento circular, que sempre a impele ao mesmo lugar – ou seja, à busca frenética por algo para comer. O labirinto da agonia que impelia sempre à vontade de comer nunca satisfeita. A fome era uma visitante constante. Ela batia à porta de Carolina todos os dias.

 
Carolina na comunidade de Canindé

Diante de tão grande penúria é possível perceber as oscilações existenciais da escritora. Há dias em que ela se mostra otimista. Seu entusiasmo se derrama em um tipo de sabedoria. Por sua vez, há momentos em que se pode observar a tristeza e o desejo de morrer junto com os filhos. “Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa, pensando: será que Deus esqueceu-me? Será que ele ficou de mal comigo?”

No final dos anos de 1950, teve contato com o jornalista Audálio Dantas, responsável por compilar e publicar aquilo que ficou conhecido como “Quarto de despejo”. O sucesso foi instantâneo. Em uma semana, mais de dez mil exemplares foram vendidos. Fizeram-se traduções em mais de treze idiomas. Até hoje, a escritora é uma das mais vendidas no exterior, principalmente nos Estados Unidos.

A fama de Carolina permitiu que ela saísse da favela de Canindé. Mas isso não deu a ela a riqueza esperada. Quando faleceu, no dia 13 de fevereiro de 1977, aos 62 anos de idade, Carolina vivia uma espécie de ostracismo. A fama que ela conquistara esmaeceu. Morreu após um ataque de asma, algo que seria facilmente remediável.

Carolina é um caso paradigmático, pois, sendo mulher, negra, de origem humilde, aponta para um tipo de condenação, que é o silenciamento. Ela, apesar de ser uma escritora genial, não experimentou plenamente a emancipação e a dignidade financeira que lhe era necessária para viver com tranquilidade com os três filhos. Restou o documento duro, cortante, provocador, que nos tira do lugar de tranquilidade; que nos faz pensar nas milhares de “carolinas” que vivem pelo país uma realidades tão atrozes, muitas como Carolina Maria de Jesus.

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