quarta-feira, julho 31, 2024

Richard Wagner: música, genialidade e controvérsias

 

[Wagner era um] “gnomo fungador da Saxônia com talento bombástico e caráter desprezível”

Thomas Mann, sobre o compositor alemão.

 



No início da semana, terminei a audição da famosa tetralogia do Anel, do compositor alemão Richard Wagner. Os quatro trabalhos somam mais de quinze horas de música, teatro e uma exigente performance para os músicos. Os quatro trabalhos – “O ouro do Reno”, “As Valquírias”, “Siegfried” e “O crepúsculo dos deuses” são trabalhos complexos e que revelam as enormes aspirações do compositor. “O anel do Nibelungo” pode ser colocado como uma das produções mais rigorosas já produzidas por um ser humano. Por trás dessa grandiosa obra, nota-se o homem Richard Wagner.

Para completar esse quadro, li uma excelente reportagem no jornal alemão DW, publicada há dois dias que tratava sobre o homem e o mito Richard Wagner. Ao longo de sua vida – e até hoje -, o compositor construiu, ao mesmo tempo, um exército de admiradores quase religiosos e um outro exército de críticos ao seu trabalho e à sua personalidade. Ou seja, não há como negligenciar a condição de polemista do alemão.

Primeiramente, é importante abordar o caráter político do alemão. Há por trás de sua personalidade manifestações preconceituosas e oportunistas. Em vida, Wagner foi o defensor de um resgate do verdadeiro espírito alemão. Seu antissemitismo é um dos aspectos mais asquerosos de sua biografia. Certamente, ele fortaleceu, no final do século XIX, muitas das aversões que foram direcionadas aos judeus. Outro aspecto, nebuloso é a ligação de seus descendentes com a ideologia de Hitler. Não se pode dizer que Wagner inaugurou o nazismo. Não existe o menor fundamento histórico para isso, mas, pode-se afirmar que a música do compositor foi usada como estética para a pedagogia do 3º Reich. Quando se observam as imagens dos soldados perfilados, da regularidade da marcha, dos uniformes, as multidões perfiladas, tudo cria uma frugalidade e um rigor operístico. Certamente, o entusiasmo nacionalista do compositor criou essa identificação. A personalidade de Wagner passou a ser admirada e endeusada pelos principais líderes do regime nazista.

Hitler, desde a juventude, havia se apaixonado pela música do alemão. Fazia incursões anuais para Bayreuth, pequena cidade do interior da Alemanha, onde foi construído sob o patrocínio de Luís II, da Baviera, o famoso teatro para que as óperas do compositor fossem encenadas. Todos os anos, 11 de suas principais óperas são encenadas nos meses de julho e agosto. Isso tem sido feito desde 1876. A fila para conseguir um ingresso é altamente disputada, chegando a 8 ou 10 anos.

Em segundo lugar, é importante dizer que a música de Wagner não deve ser negligenciada. O drama é uma condição inexpugnável de sua música. Ela é elevada a níveis altíssimos. Algumas de suas óperas possuem quase quatro horas de uma apresentação intensa em que não é possível baixar a intensidade. Ou seja, um verdadeiro desafio para aqueles que desejam representá-la. A obra do compositor procura exaltar um ideal de grandiosidade e pureza. Sua música é capaz de provocar fortes emoções. Há nela elementos fantasiosos e uma atmosfera quase religiosa.

O “talento bombástico” ao qual se refere Mann diz respeito, certamente, ao magnetismo que a música do alemão promove. Bruckner o chamava “mestre dos mestres”. A admiração do compositor austríaco era das mais exageradas. Ele viajou algumas vezes da Áustria para a Alemanha para acompanhar o famoso Festival na cidade de Bayreuth. Suas 11 sinfonias estão impregnadas de Wagner. Dedicou a Terceira Sinfonia, cujo nome “Wagner” faz uma referência explícita à admiração que tinha pelo grande operista.

Wagner insere uma nova página para a música moderna. Suas inovações podem ser percebidas, por exemplo, na relação que ele estabelece da voz com a força da massa sonora da orquestra. Em Wagner, não somente os cantores contam a história. A orquestra também o faz. Notam-se por meio de insinuações dos instrumentos, a adequação entre o que está sendo cantado e o que está sendo reproduzido pelos músicos da orquestra. Nada é gratuito. Tudo deve ser observado, pois tudo compreende o drama. Os leitmotivs também foram uma técnica desenvolvida por ele como espécie de metalinguagem para que fossem percebidos insinuações do tema do trabalho que é representado. 

Ao ouvir as quatro óperas (uma por semana) de “O anel do Nibelungo”, pude absorver um pouco da atmosfera grandiosa e megalomaníaca do compositor. Em um primeiro momento, a impressão que nos passa é de que estamos diante de lendas ultrapassadas sobre mitos germânicos. Não. Wagner depositou ali os dramas humanos – a força, a honra, a coragem, a verdade, a mentira e tudo aquilo que envolve o desafio que é ser humano. O homem Wagner está escondido por trás de camadas polêmicas de controvérsias, mas sua música é grande, sublime, de força avassaladora. E isso é incontestável.

terça-feira, julho 30, 2024

"Esaú e Jacó", de Machado de Assis - algumas observações


“Paulo gostava mais de conversa que de piano; Flora conversava. Pedro ia mais com piano que com a conversa, Flora tocava. Ou então fazia ambas as coisas, e tocava falando, soltava a rédea aos dedos e à língua”.

Capítulo XXXV

“Todos os contrastes estão no homem”.

Capítulo XXXV

Terminada a releitura de “Esaú e Jacó”, restou a impressão de que essa é uma das obras que melhor desvelam o seu autor. Revela um escritor maduro, que oscila entre a sátira, o niilismo e um estoicismo recolhido, personificado na pessoa do personagem do Conselheiro Aires. Vale lembrar que o ataráxico Aires seria o personagem principal que levaria o nome do último romance escrito por Machado – “Memorial de Aires”. No de caso de “Esaú e Jacó”, o escrito emprega o pessimismo e o faz por meio daquilo que ele sabia fazer melhor – a ironia fina, escorregadia, urdida em uma arquitetura textual primorosa. 

O livro foi publicado no ano de 1904, mesmo ano em que faleceu a sua inseparável companheira de 35 anos – Carolina Xavier. Machado contava com 65 anos de idade. Era um sujeito experimentado e habilidoso. Havia acumulado uma carreira de muito trabalho e consequente sucesso. Até aquele momento, escrevera obras que estão colocadas no panteão definitivo das produções literárias nacionais – “Memórias Póstumas”, “Dom Casmurro”, “Quincas Borba”, além de inauditos contos como “O alienista”, “A igreja do diabo”, “O espelho” e “A teoria do medalhão” entre outros. O seu realismo havia se escancarado, como lhe era comum; todavia, pode-se notar um ceticismo medido e mais acentuado em “Esaú e Jacó”.

As camadas de ironia do texto construído em torno dos antípodas Paulo e Pedro, encobrem, numa camada profunda, o entendimento de que a realidade pode ser diversa; que a história dos homens pode se alternar; que o elemento preponderante da realidade é a impermanência. Na parte final da obra, o narrador afirma: “Enfim, a morte chega, por muito que se demore, e arranca a pessoa ao pranto ou ao silêncio”. Em um dos capítulos da obra, naquelas incursões típicas do narrador que dialoga com o leitor (tão próprias de Machado de Assis), encontramos: “Não envelheças, amiga minha, por mais que os anos te convidem a deixar a primavera; quando muito aceita o estio”. Verifica-se que há uma acentuada preocupação com a questão do “tempo”. Ele aparece como motivo de reflexões ou envolve a vida dos personagens, traduzindo em acontecimentos em que se nota o quanto as personagens são atravessadas por esses efeitos. Ninguém pode se conduzir pela existência, simplesmente, ignorando-o; ou desconsiderando os seus sinais.

Machado de Assis

Fato curioso reside – de início – no nome da obra. Esaú e Jacó são os nomes dos dois filhos de Isaque – e este, filho de Abraão, de acordo com o texto bíblico. Os dois irmãos são criados de forma distinta. Esaú é caçador e tem a predileção do pai; Jacó, por sua vez, é benquisto pela sua mãe Rebeca. Os dois são concebidos em disputa. Esaú nasce primeiro, mas Jacó segura-lhe o calcanhar. O nome Jacó deriva de uma expressão hebraica que significa “ele agarra o calcanhar” e serve para designar uma pessoa de comportamento enganoso. Esaú é o mais velho e, portanto, todas as prerrogativas jurídicas da herança caíam sobre ele.  Jacó e sua mãe conseguiram usar um estratagema para fazer com que o irmão mais velho trocasse o direito de primogenitura por um prato de lentilha. Mais tarde, todos os efeitos da primogenitura recaem no colo de Jacó e ele passa a ser chamado de Israel. Esse confronto manifesto é explicado por meio de uma profecia dirigida a Rebeca pelo próprio Javé: “O mais velho servirá ao mais novo”. Os dois fundariam dois povos poderosos, mas essas nações seriam inimigas.

Apesar desse pano de fundo, os dois personagens de “Esaú e Jacó” não são chamados dessa forma. Um se chama Paulo e, outro, Pedro. Aquele era um entusiasta republicano e este um calejado monarquista. São completamente distintos em várias questões. Parecem existir para se confrontarem. Paulo e Pedro também são nomes extraídos Bíblia. Todavia, são nomes ligados à fundação do cristianismo. Enquanto Pedro estava ligado à Igreja de Jerusalém, Paulo é o apóstolo onipresente que estrutura um discurso e o leva aos confins do Império Romano. Ele é o pregador da diáspora, seu “ethos” é o da integração, do universalismo, da difusão plural, pois pregava aos romanos, gregos e demais povos da Antiguidade. Dominava a língua grega, a língua da cultura sistematizada da época. Além disso, é possível que soubesse o latim, a língua do Império e responsável por organizar as questões políticas e militares. Pedro, por sua vez, estava circunscrito ao ambiente judaico de Jerusalém e dominava, possivelmente, o aramaico. Nota-se, assim, que Machado genialmente une Antigo e Velho Testamento para construir o enredo da obra. Estica-se um fio que se apropria de elementos judaicos e elementos cristãos.

O Rio de Janeiro, em 1889, ano da Proclamação da República
 

Outro importante aspecto diz respeito ao momento histórico que a obra retrata. Nesse sentido, é um importante texto para estabelecer conexões com a fundação da chamada República Velha. Lima Barreto também a retrataria, mais tarde, em “O triste fim de Policarpo Quaresma”. Pedro torna-se médico; forma-se no Rio de Janeiro, sede da capital do Império. Paulo, torna-se advogado; estuda em São Paulo, um dos centros irradiadores das ideias republicanas. Vale mencionar que em São Paulo fica a prestigiada Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. Lá estudaram boa parte dos intelectuais que alimentaram a chama do republicanismo no final do século XIX.

A única questão que une os dois personagens é a paixão pela linda Flora, que ora se decide por um; ora se inclina para outro, sem tomar qualquer decisão. Observa-se que ela morre sem se decidir nem por um nem por outro. Em “Esaú e Jacó” o jogo muda, ganha novos contornos, pois a vida é repleta do efêmero. O ser humano também o é. Em tempos de mudanças, o que fica é a força da falta de estabilidade. Para algumas pessoas, essa característica gera inseguranças. No geral, as pessoas não lidam muito bem com a impermanência. Todavia, a realidade se constitui pela transformação, pela contradição.

A obra faz referência a alguns dos eventos que foram responsáveis pela organização política e econômica do país no século XX. Um dos principais eventos foi a Proclamação da República, arrancando o país da condição de Império, o último das Américas. Menciona-se ainda a Abolição da escravatura, um dos eventos que mudaria em definitivo a relação do capital com as forças produtivas. Além dessas questões, a mudança do Império para República deflagrou uma crise econômica denominada de Encilhamento. 

Sendo assim, observa-se que Machado se utiliza de personagens complexos para realizar uma análise das contradições existentes no ser humano, bem como refletir sobre os eventos políticos do seu tempo. Machado lança mão da ambiguidade para apontar que a vida pode ser conduzida por mares diversos. Tanto Paulo quanto Pedro são faces da mesma verdade, que é a vida. As indecisões presentes em Flora também fazem parte da existência. As paixões exacerbadas apenas fazem sofrer, pois como diz o próprio narrador “todos os contrastes estão no homem”.  

quinta-feira, julho 04, 2024

Minhas 10 sinfonias favoritas


É muito comum encontrarmos as mais variadas listas na internet sobre os mais diferentes temas. O objetivo é sempre deixar transparecer as escolhas ou preferências de determinadas pessoa. Há listas a respeito de livros, filmes, séries, os melhores locais para onde uma determinada pessoa viajou, comidas, músicas, praias etc; ou sobre gêneros específicos. É possível, por exemplo, falar sobre as melhores crônicas, contos ou romances, dentro do tema livros.

Eu, particularmente, já cheguei a fazer algumas. Levando-se em conta que a escolha é muito pessoal e está envolta pelo o momento em que se faz a lista, resolvi construir uma com as minhas dez sinfonias preferidas. Escuto música clássica por muitas horas do meu dia. E, às vezes, chego a lamentar o fato de um dia não mais apreciar esse gênero musical. Há indescritíveis experiências da vida que são um lamento perder; a música é uma delas.

Fazer uma seleção musical sugere algumas dificuldades. Primeiramente, o que escolher? Em uma lista tão exígua, o que deixar de fora? Por exemplo, posso dizer que três ou quatro sinfonias de Beethoven estão entre as minhas preferidas; a mesma coisa posso dizer sobre Bruckner ou Mahler. Somente nessa contagem eu já extrapolei o número inicial a que me propus relacionar. Por isso, procurarei não repetir o mesmo compositor.

É importante salientar que essa lista é pessoal e circunscreve algumas de minhas predileções do momento como já enunciado. Pode ser que, em outro momento, essa lista mude completamente.

Segue a lista:

01 – Dmitri Shostakovich - Sinfonia No. 13 em Si bemol menor, Op. 113 - "Babi Yar"

02 – Anton Bruckner - Sinfonia No. 4 em mi bemol maior, "Romântica"

03 – Gustav Mahler – Sinfonia No. 2 – “Ressurreição”

04 – Ludwig van Beethoven - Sinfonia No. 3 em mi bemol maior, Op. 55 - "Eroica"

05 – Johannes Brahms - Sinfonia No. 1 em dó menor, op. 68

06 – Piotr I. Tchaikovsky - Sinfonia No. 6 em si menor, op. 74, “Patética”

07 – Félix Mendelssohn - Sinfonia No.4 em Lá Maior, Op. 90 - "Italiana"

08 – Jean Sibelius - Sinfonia No. 3 in C maior, Op. 52

09 – W. A. Mozart - Sinfonia nº 41 em Dó maior, K. 551, “Júpiter”

10 – Robert Schumann - Sinfonia nº 2 em Dó maior, op. 61

Muitos trabalhos que poderia citar ficaram de fora. Por exemplo, a Sinfonia 100 – “Militar” -, de Haydn. A maravilhosa Sinfonia No. 5, de Prokofiev. A vaga, mas não menos bonita e noturna Sinfonia No. 3, de Rachmaninov, de que gosto bastante. Algumas das espetaculares sinfonias de Schubert como, por exemplo, a Sinfonia No. 8, a “Inacabada”. Algumas das sinfonias de Antonin Dvorak; a Sinfonia No. 9 (“Do Novo Mundo”) é um exemplo. A Sinfonia No. 3 – “Pastoral” -, de Vaughan Williams. A espetacular Sinfonia No. 5, do dinamarquês Carl Nielsen. A Sinfonia No. 3 – “Sinfonia com órgão” -, de Saint-Säens. A bonita Sinfonia No. 1, de Edward Elgar. A Sinfonia No. 2, de Glazunov. A belíssima Sinfonia em Sol menor, do brasileiro Alberto Nepomuceno. E a poderosa e evocativa Sinfonia No. 3 – “Guerra” -, de Villa-Lobos.

São todos trabalhos diletos pelos quais tenho grande admiração. Poderia citar outros, mas essas, acredito, fazem parte de minha formação musical. Poderia levá-las para uma ilha deserta sem nenhum embaraço.

Na próxima postagem desse tipo, destacarei meus dez concertos – e aqui independe o instrumento – favoritos.

P.S1. Criei uma pasta no Spotify com as dez que mencionei.
 
P.S2. Criei uma segunda pasta no Spotify com as sinfonias mencionadas acima, mas que não apareceram na lista das dez.