O texto a seguir é parte de uma crônica de Machado de Assis, publicada, em 19 de maio de 1888. A Abolição se dera 6 dias antes daquele mesmo mês. No texto, Machado desfere golpes de fina ironia. O texto é repleto de camadas que escancara como se estrutura a sociabilidade brasileira. Reflete sobre a sociedade de relações verticalizadas e sem a devida consideração humana a respeito de quem é o outro. Serve como alegoria para explicar como "os de cima" - para usar uma expressão de Florestan Fernandes - tratam aqueles que estão embaixo. Apesar de haver uma consolidação de um "Dia da Consciência Negra", ainda há muito para se caminhar, muito para se refletir, muito a se fazer.
Segue o texto:
"Abolição
[...]
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que…
– Oh! meu senhô! fico.
– …Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho dêste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos…
– Artura não qué dizê nada, não, senhô…
– Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
– Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Êle continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe bêsta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas tôdas que êle recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a tôda a gente que dêle teve notícia [...]."
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