quarta-feira, novembro 27, 2024

A história da confusão das línguas em Gênesis 11

 

Uma representação da torre. 

                No livro bíblico de Gênesis, há muitas passagens em que se percebe a existência de etiologias. Entendem-se as etiologias como mitos de fundação. Esses mitos existem com o intuito de justificar a existência do mundo ou de uma estrutura social. Por exemplo, os primeiros capítulos do Gênesis são manifestas etiologias. Observa-se, por exemplo, a descrição que o autor – ou que os autores -  dessa porção do texto realiza(m) ao descrever(em) a forma como supostamente Javé teria criado o mundo numa operação ex nihilo.  A ideia de mito fundador pode ser observada na forma como ocorre a suposta criação do mundo – os mares, as estrelas, o céu, a terra, os animais, etc. O movimento de como as ações são narradas é uma forma de explicação que justifica a realidade e tudo o que existe.

                No capítulo 11.1-9, do mesmo livro de Gênesis, há a descrição do conhecido episódio da Torre de Babel. Ao longo do tempo, já ocorreram inúmeras tentativas de explicação dessa passagem. Nessa descrição, é possível observar outra etiologia que procura explicar a existência das variedades linguísticas existentes no mundo. Certamente, o autor dessa parte do Pentateuco, ao olhar para a polifonia de vozes existentes ao redor de Israel, deve ter se baseado em alguma lenda para produzir o texto.

                O texto afirma que, após terem sobrevivido ao Dilúvio (outra etiologia), alguns homens marcharam para o leste e se estabeleceram na terra de Senaar (v.2)[1]. Em seguida, puseram-se a construir uma “cidade e uma torre cujo ápice penetre os céus” (v.3). O texto, logo em seguida, afirma o seguinte: “Ora, Iahweh desceu para ver a cidade e a torre que os homens tinham construído”. (v.5). O uso da partícula expletiva de realce “ora”, serve para introduzir a figura da divindade judaica na história. Funciona do ponto de vista retórico como a segunda parte do raciocínio que justifica o motivo pelo qual algo passou a ser de determinada forma. Iahweh “desce” de sua morada para realizar duas ações: (1) ver a cidade; e (2) a torre que os homens tinham construído. É importante dizer que a cidade e a torre já estavam construídas, mas, em algum momento, teria reprovado os eventos que ocorriam naquela inventiva comunidade. Seu olhar moralizante condena a ousadia dos homens. Ora, por que os homens não poderiam construir a cidade e a erguer a torre?

O autor dessa porção do texto bíblico aproxima Iahweh das divindades dos povos vizinhos aos israelitas. A ação de “descer” aproxima a divindade judaica aos deuses que habitavam o Olimpo, por exemplo. Zeus de tempos em tempos descia da sua morada para interferir ou mudar determinado aspecto da realidade. Segundo alguns estudiosos, essa é uma evidência da fonte javista[2]. Os registros da fonte javista ou fonte J, sugerem Iahweh como uma divindade antropomórfica. Por exemplo, em Gn 3.8 há a afirmação de que “Iahweh Deus (...) passeava no jardim à brisa do dia”, uma evidente antropormorfização da divindade.  Ao longo do Velho Testamento, principalmente nos livros proféticos, a figura de Iahweh vai ganhando aspectos transcendentes e perdendo a característica antropomórfica.

No versículo seguinte, após ter constatado os empreendimentos humanos, Iahweh afirma que nada seria “irrealizável” para os homens. Percebe uma potência incontrolável na humanidade. Não gosta do que vê. A Nova Tradução Internacional (NVI) está assim traduzida na parte B do versículo 6: “Em breve nada poderá impedir o que planejam fazer”.  Ou seja, depreende-se que nem mesmo Javé seria capaz de controlar essa expansão de poder.

A partir dessa constatação, a divindade suprema do povo judeu decidiu “confundir a linguagem” a fim de que aqueles que empreendiam o projeto desistissem da ação. Curiosamente, no versículo 7 – tanto na NVI quanto na Bíblia de Jerusalém (duas excelentes traduções) – os verbos que exprimem a ação de Javé  estão no plural, deixando implícito que a ação que baratinou a construção foi feita em concílio, ou seja, com mais de uma divindade[3]. Esse é um fenômeno que se repete em passagens do Gênesis. É conhecida a passagem dos capítulos iniciais do livro, em que pode ser lido: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”. Pode ser percebido ainda que a Bíblia de Jerusalém mostra que Iahweh – no versículo 7 - utiliza praticamente os mesmos verbos usados pelos homens no versículo[4]. Há uma ação contrária àquela realizada pelos homens. Enquanto os homens procuram construir, Iahweh procura des-construir, colocar freios à ação humana.

Neste quesito, aponta-se outra característica da fonte javista, ou seja, a procura de distinção do homem e da divindade. A fonte J procura impor limite entre a falibilidade humana e a grandeza de Iahweh, que deve assinalar sua posição como divindade suprema acima do mundo. Ele governa e, se necessário, andará no meio dos homens para mostrar que eles não prevalecem.

Iahweh censura o empreendimento realizado pelos homens. A multiplicação de línguas teria se constituído em um fator de impedimento para que o projeto de expansão da “cidade” e da “torre” continuasse o seu curso. Javé põe freios à ousadia humana. Sua ação é deliberadamente melindrosa; sua interferência, ressentida.  Vale mencionar que os homens que decidiram construir a cidade e a torre faziam parte da geração pós-diluviana. Há ainda uma desconfiança de Iahweh nesses homens. Certamente, havia o entendimento de que a maldade deles era um fator que gerava insatisfação em Iahweh. Reside neste fato outra característica da fonte javista – ou seja, a descrição do crescimento da maldade entre os homens. Iahweh teria feito os homens de forma perfeita, mas eles foram alcançando escalas de ensandecimento cada vez mais acentuadas.

Representação de um zigurate. 

Nos versículos finais que retratam o mito, Iahweh “dispersa” aqueles obstinados homens “por toda a face da terra”. Aquele incidente ficou conhecido como “Babel”. Os judeus se reportavam a Babilônia como Babel, cujo significado é “confusão” ou “mistura”. A escrita dessa etiologia, certamente, procurava, a partir de uma lenda existente, fazer um revisionismo histórico, criando um mito fundador. Alguns estudiosos, indicam que a fonte javista foi redigida nos séculos VI e V a.C.

É importante dizer ainda que essa revisão histórica procurava obumbrar a grandiosidade da civilização apontada no texto. Como indicam as pistas do texto, é possível que os substratos da referência histórica remetam à Babilônia. Afirmar a supremacia de Iahweh sobre essa “torre” e essa “cidade” sugere que há uma animosidade contra o crescimento e a pujança daquela civilização. Alguns intérpretes apontam que, quando o texto fala de “torre”, talvez, estejam a sugerir os famosos zigurates. Essas construções eram comuns entre os assírios, babilônicos e sumérios. Elas possuíam a forma de uma pirâmide terraplanada e ostentavam uma função religiosa. Aos serem construídos, buscava-se colocar os homens mais próximos das divindades. Além da função religiosa, serviam de biblioteca, espaço de observação das estrelas e local para guardar grãos, o que indica uma importante função para aquelas civilizações. O registro dos primeiros zigurates remontam dois milênios antes de Cristo.

Em suma, ao escreverem o mito fundador da conhecida história da confusão das línguas, buscava-se produzir uma reinterpretação da história: (1) para rebaixar a grandiosidade da civilização babilônica; (2) para delimitar a soberania de Iahweh como divindade suprema; (3) para desacreditar a estrutura religiosa dos povos vizinhos; (4) para criar uma narrativa com objetivos doutrinários, com finalidade de formação identitária. Ou seja, e, a partir disso, neutralizar o reconhecimento da grandiosidade das outras nações vizinhas a Israel.

 

[1] Realizei a minha leitura na Bíblia de Jerusalém, por isso emprego o termo “Iahweh” conforme aprece na tradução. 

[2] A teoria das fontes ou críticas das fontes é uma hipótese desenvolvida por Julius Welhausen. Segundo esse estudioso alemão, o Pentateuco é o resultado da estruturação de quatro fontes principais: a eloísta, a javista, a sacerdotal e deuteronomista.

[3] (1) A Bíblia de Jesuralém diz: “Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros”.  (2) A NVI afirma: “Venham, desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam mais uns aos outros".

[4] No versículo 4 – os homens afirmam: “Vinde! Construamos uma cidade e uma torre cujo ápice penetre os céus!” No versículo 7 – Iahweh diz: “Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam”.

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