“Antes, eu
esquecia rápido o que acontecia em casa; mas agora, desde que comecei a anotar
os eventos cotidianos, mantenho-os na memória e tento compreender por que se
produziram”.
Valeria,
personagem do livro “Caderno proibido”.
Alba de Céspedes foi uma importante e arrojada escritora de família ítalo-cubana. Sua mãe era italiana, já o pai, de quem herdou o sobrenome de Céspedes, era cubano. Diplomata de profissão, morou em vários locais da Europa, o que permitiu a Alba um olhar privilegiado sobre a situação do seu tempo nas primeiras décadas do século XX. De família economicamente privilegiada e de posicionamento progressista, de Céspedes, desde muito cedo, foi uma observadora privilegiada. Chegou a ser presa em 1935 por sua militância antifascista.
Ao longo de sua prodigiosa carreira, de Céspedes foi roteirista de cinema, poetisa, dramaturga, romancista e, sobretudo, uma mulher à frente do seu tempo. A escritora é reputada como uma das mais importantes feministas do século XX na Itália. Essa sua posição que ajudou as a mulheres a refletirem a própria condição, foi demasiado necessária do ponto de vista político.
Em “Caderno Proibido”,
encontramos um dos seus mais conhecidos e bem escritos textos. Do ponto de
vista da estrutura narrativa, o mote parece simples, sem maiores sofisticações.
Um certo dia, uma mulher de pouco mais de quarenta anos, portanto, ainda muito
jovem, mãe de dois filhos, casada, vai a um estabelecimento comercial a fim de
comprar cigarros para o marido. Era domingo. Inopinadamente, ela decide comprar
um diário. Era proibido comprar um bem daquele em pleno domingo. Conseguiu
convencer o vendedor arredio que a aconselhou a esconder o caderno “embaixo do
casaco”.
Alba de Cespedes |
É, a partir dessa ação aparentemente banal que descobrimos quais são os dramas, fatos e contradições que existem no interior da personagem. Narrado em primeira pessoa – afinal, é assim que se redige um diário -, o texto é eloquente em seu movimento subjetivo. O diário, geralmente um portador de texto que é costurado na adolescência, no romance, é escrito por uma mulher madura, de 43 anos de idade. Ela o escreve em um período de aproximadamente seis meses. Das primeiras anotações até as últimas, pode ser observado um movimento de transformação – no princípio tímido e, consistente, à medida que certa disposição interior ocorre. O diário funciona como um dispositivo que permite a personagem entrar em contato consigo mesma.
Tendo quarenta nos anos 50, em uma Itália dilacerada pela experiência do pós-guerra, Valeria carrega consigo a formatação de um tipo de consciência histórica. Sua filha Mirella – de vinte anos – é a personagem que consegue elaborar as reflexões mais duras e realísticas com a mãe. Riccardo, o filho que Valeria trata com máxima tolerância, reproduz o modelo masculino, criado para ter os privilégios que a sua condição de homem permite. Michele, o companheiro de Valeria, é um tipo afetivamente desidratado por quem Valeria já não nutre os mais cálidos sentimentos. Apenas um respeito vazio e obrigação tácita adquirida pelo dever imposto pela relação monogâmica. A relação dos dois recebe as primeiras cintilações da mornidão. Michele a chama inadequadamente de “mamãe”. E ela atende os requisitos da “mamãe” de todos. Exerce aquela condição própria da mulher pequeno-burguesa. Na Itália pós-guerra, é obrigada a trabalhar a fim de engrossar o orçamento familiar. Envolta pela rotina e pelo trabalho, da preocupação com os afazeres domésticos, Valeria percebe o quanto é despersonalizada da sua condição de mulher; ou pelo menos procurar entender aquilo que lhe é desconhecido.
Valeria experimenta uma contradição, pois descobre que sua jovem filha está tendo um caso com um homem casado. Isso a incomoda. Cria um cenário para disputas e conversas desgastantes com filha. Mirella diz que a pessoa com que está se relacionando, encontra-se em processo de divórcio. Por sua vez, após muito refletir, Valeria vê-se enleada por uma paixão com o seu chefe. Ela gravita entre os deveres de uma boa esposa; de uma dona de casa ciosa pela sua condição e a experiência fagueira da paixão, experimentada com Diego, seu chefe; um homem rico e afetuoso.
Valeria para se conhecer, para desmantelar o papel social que lhe foi atribuído, precisa experimentar o proibido. Escreve de forma clandestina, geralmente, “nos pontos-cegos”, ou seja, quando fica sozinha ou tarde da noite, quando a família vai dormir. Para viver uma sexualidade diferente, ela se relaciona com outro homem, mesmo estando presa a um relacionamento de mais de vinte anos. O diário permite que a personagem venha a se dá conta da própria subjetividade. Esse movimento ocorre após a observância da própria transformação. Na parte final da obra, ela afirma como se já estivesse plena e consciente da sua obra realizada: “...todas mulheres escondem um caderno negro, um diário proibido”. Essa afirmação sugere que, no fundo, as mulheres possuem um conhecimento de sua própria condição, o que é questionável pela experiência.
“Caderno proibido” é uma obra desafiadora e de bom gosto. Sua escrita é viciante. Há quem afirme que foram os textos de Alba de Céspedes os responsáveis pela escrita ácida de Elena Ferrante. Entende-se o porquê. De Céspedes foi uma escritora poderosa, de um estilo caudaloso, que muito diz e insinua a respeito da condição da mulher do seu tempo; das mulheres que guardam diários e que experimentam o proibido com a finalidade de realizarem autodescobertas.
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