“...dizem uns que a vida é um
perde e ganha. Eu digo que a vida é uma perdedeira só, tamanho é o perder”. P.
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Terminei a leitura de minha primeira experiência com a prosa da escritora Conceição Evaristo. Em agosto de 2023, tive a oportunidade de vê-la na 1ª edição da Fli Paracatu. Escutei-a rapidamente em uma das mesas. Sua fala mansa, com o sotaque e a simplicidade da gente comum, traduzia muito bem a identidade de seus personagens. Acabei comprando um dos seus livros ao longo da Feira – Becos da Memória. Tive a oportunidade de lê-lo somente agora.
O título da obra é bonito, evocativo em seu delicado sentido poético e em sua significação literária. Becos são “quebradas”, locais de fuga, pontos de passagem - ou, simplesmente, um local de encurralamento, onde não há saída. Memória, por sua vez, é aquele local do indizível, dos afetos. É o lugar em que os fatos são colhidos pela subjetividade, mas a partir das experiências vividas pelo sujeito. Todo indivíduo possui memórias. Essas memórias são capazes de formar o terreno que estrutura a personalidade e fazem com que haja um sentido para o mundo. Um povo, uma comunidade, também, possui memórias. Ou seja, a memória é a categoria existencial que permite que os homens continuem homens e sejam capazes de se entenderem historicamente.
Dessa forma, beco, em sua semântica, pode suscitar a ideia de tortuoso. A memória, quando não escutada, validada, pode se perder nas curvas da história. Principalmente, as memórias daquelas pessoas a quem não é dado o direito de ser. Essa dimensão está implícita na obra de Evaristo, principalmente no termo cunhado por ela – escrevivência (escrever + vivência). Essa aglutinação representa muito bem o projeto literário da escritora mineira, radicada no Rio de Janeiro.
A sua própria história permite que entendamos o significado dessa palavra. Evaristo - primeiramente - mulher preta, nasceu em Minas Gerais. Ainda muito jovem, foi para o Rio de Janeiro. Trabalhou como doméstica, algo tão próprio às mulheres de sua cor, às mulheres de sua origem. Foi a leitura, a escrita e as vivências que a fizeram sair do esquecimento subterrâneo. Atuou como professora. Formou-se em Letras. Fez mestrado e doutorado. Aos poucos, foi costurando as palavras e trazendo à tona os riscados do tempo que ficam em forma de memória.
Evaristo afirma que a memória do povo preto foi colocada em um limbo. Não foi dada ao negro contar e ressignificar sua própria memória. Alguém fala por ele; determina-lhes o local onde devem ficar; a forma como devem pensar; e o tipo de recorte histórico que devem realizar. Os negros foram aqueles que mais tiveram a memória roubada. É preciso reconstruir o passado, mas como não há documentos escritos em abundância, afinal, a história dos negros é uma história subterrânea, é preciso traduzir suas cores e potência por meio da ficção. A escritora afirma no texto que abre Becos da Memória que “nada que está narrado em becos da memória é verdade, nada que está narrado em Becos da Memória é mentira”. A realidade se apoia na ficção, mas a ficção também é um elemento que fornece mais conteúdo à realidade. Nos textos de Evaristo, as duas se irmanam para produzir a escrevivência. Alguns dos personagens do livro são reais como, por exemplo, o tio Totó.
Conceição Evaristo |
O processo de transposição da escrita e da vivência não tem o objetivo de traduzir lutas individuais. Ela se assenta no coletivo. Se fosse apenas subjetiva, morreria no próprio indivíduo. A luta pelo resgate da memória não deve ser a luta de um sujeito refratário, mas de uma coletividade que se escuta e se entende. Em Becos da Memória constatamos esse movimento da apalavra à procura de tornar efetiva a luta pela existência de pessoas marginalizadas. Marginalizar é uma forma de impedir que a memória continue viva e pulsante.
Encontramos no livro um mosaico de micro-vivências, formando um tecido repleto de capilaridades. Os pequenos relatos formam uma paisagem em que há muitos elementos capazes de criar a uniformidade da dor. As personagens são desgraçadamente infelizes à sua maneira. O silenciamento cria uma aniquilação social. A impossibilidade da fala e da visibilização da miséria cria espaços para a violência contra essas existências; e essas violências são sentidas no corpo e, sobretudo, na impossibilidade de ser.
Confesso que não gostei da obra no início da leitura. Depois, fui me acostumando aos personagens. São homens, mulheres, crianças, velhos e velhas que carregam os dramas de milhões de pessoas que habitam favelas, morros e locais marginalizados; sobretudo, são mulheres, as primeiras vítimas da impossibilidade de terem memória e que sentem no corpo a violência do presente e do passado. Um livro essencial para que o país resgate a própria memória. Afinal, o Brasil é um país cheio de becos, de vivências fragmentadas, de história mal contadas, em que são privilegiados certos atores – e certas memórias.
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