quarta-feira, março 05, 2025

De que são feitos os dias? | Cecília Meireles

De que são feitos os dias?
– De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
– do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças…

 

Acredito que este seja um dos poemas que mais concentram o mistério de que é feita a vida. Cecília consegue criar paralelos, oscilações, fluxos antitéticos, que englobam o conteúdo da existência. Camus diz em "O mito de Sísifo" que só 'vive quem toma consciência do absurdo'. Sim. Vive quem consegue lidar com o absurdo das perdas proporcionadas pelo tempo; que consegue administrar as "vagarosas saudades" e as "silenciosas lembranças"; que se escancara - incompreensível - diante de si.

A existência só se torna plena para quem reconhece ser um vulcão gerador de "mágoas sombrias", mas que é capaz de "pequenos lampejos", de "vagas felicidades" e de "inatuais esperanças". Somos feitos de contradições, de movimentos inconscientes, gestados da cumplicidade daquilo que, muitas vezes, não controlamos e não sabemos da sua textura. A vida absurda é feita "de loucuras", "de crimes", "de pecados", "de glórias", de fracassos, de avanços... e retrocessos. Somos feitos "de medo". Misturamos muitas substâncias em nosso ser. Distraímo-nos a maior parte do tempo. Dentro dessa realidade "vivemos", avançamos, "choramos" com as resoluções desencontradas e, com isso, forjamos "sinistras alianças".



domingo, março 02, 2025

"Ainda estou aqui" - livro e filme

Li em janeiro "Ainda estou aqui", do escritor Marcelo Rubens Paiva. O livro inspirou o filme de Walter Salles. A leitura do livro se deu de maneira intensa, sem que pudesse desgrudar do seu texto. Escrito com forte sabor jornalístico, a história produz emoções variadas. Aos poucos, somos puxados para testemunharmos as particularidades daquela família de classe média  - tão comum, tão feliz - moradora do Leblon, um dos bairros mais famosos do Rio de Janeiro. Marcelo conta a história em camadas, até o desfecho central da história, que é a prisão e o sumiço do pai; e o jogo macabro de versões contado covardemente pelos verdugos da Ditadura; bem como a transformação pela qual sua mãe precisou enfrentar para conseguir continuar após a morte do marido. 

Hoje, tive a oportunidade de assisti ao filme encenado magistralmente por Fernanda Torres. Walter Salles, com uma condução impecável da história, conseguiu verter a história do livro para o cinema. Há toda uma expectativa criada - talvez - pela mídia acerca da possibilidade de o filme ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro. Acredito que isso não acontecerá. Não é o tipo de filme que Hollywood aplaude. Não há pirotecnias, espetacularizações, não há sangue, efeitos especiais na obra. Há, sim, a retratação da violência do Estado contra uma família. Há, sim, o luto, a dor, o medo e um tipo de "tortura" infringida à família que ficou. Eunice Paiva lutou para que a memória do seu companheiro não fosse obliterada. 
 
Medonho é saber que até hoje pouca coisa foi feita. Nenhum dos algozes foi preso ou sofreu qualquer punição. Três deles já morreram. Medonho é saber que há pessoas no país que se esforçam para que isso volte; que salivam, que riem, que fazem vista grossa à dor dos familiares enlutados. O filme presta um triplo serviço: (1) faz uma alerta para que o país nunca mais experimente um período como aquele; (2) presta uma homenagem a Eunice Paiva, que lutou pelo resgate da memória do seu marido; (3) honra a memória de Rubens Paiva, morto covardemente pelos algozes da Ditadura. 

Sei que o filme não ganhará qualquer estatueta, mas torceremos pela  pela maravilhosa Fernanda Torres, que rouba a cena.