Lima Barreto foi um escritor marginal. Um observador que construiu ironias implacáveis em desfavor de certos grupos políticos e de liderança do país. Pode-se afirmar que, no início do século XX (período em que o escritor viveu), o Brasil passava por transformações estruturais. O Rio de Janeiro, por exemplo, a capital do país, modernizava-se. Buscava uma adequação. A cidade se europeizava. As lideranças políticas queriam transformá-la em uma espécie de Paris dos trópicos. Uma demonstração evidente de subserviência, uma característica tão comum às elites do país.
O prefeito da cidade, Francisco de Pereira Passos, que também era engenheiro, resolveu implementar uma reforma que daria feições mais modernas à Capital. Morros foram aplainados. Os moradores que ali residiam, viram-se sem moradia. Foram expropriados. Alguns dos arranjos que existem atualmente no Rio de Janeiro, tiveram início nesse período. Regiões inteiras foram aterradas. Avenidas foram construídas; outras, alargadas. Era necessário criar uma cidade nova, pujante, atualizada com o espírito da época. O objetivo era criar uma belle époque dos trópicos em um país que procurava esconder o seu passado.
O embelezamento era apenas superficial, pois o Brasil continuava desigual, injusto, violento, com sua grande população de mestiços vivendo um processo de marginalização. As lideranças do país eram tacanhas e vazias. O mais importante eram os gestuais; a ostentação, a fatuidade, o jogo de aparências, de conveniências. Essas lideranças faziam um país de rábulas, de títulos; de compadrios e analfabetismo funcional. Lima Barreto era um personagem atento a esse espetáculo mambembe e prosaico.
Passados vinte anos do Golpe da Proclamação da República e da Abolição da Escravatura, o Brasil continuava violento, pobre e agrário. As oligarquias que mandavam no país procuravam esconder a realidade miscigenada, responsável pelos raízes mais profundas da identidade nacional. O próprio gesto de expulsar a população negra do Centro do Rio de Janeiro sugere isso. Muitos dos prédios do centro da cidade seguem padrões arquitetônicos dos europeus. A partir dessa perspectiva, que encontramos a literatura de Afonso Henriques de Lima Barreto, um escritor mulato, assim como fora Machado de Assis.
A diferença dos dois reside no fato de que Machado procurou aproximar-se das elites - e conseguiu. Ou seja, os passos de Machado, que também nasceu em um subúrbio, foram bem mais venturosos. Conheceu as pessoas certas; estava no lugar certo, embora seu talento seja incontestável. Lima, por sua vez, apesar do inegável talento literário, não granjeou a mesma sorte. Lima é a voz do subúrbio que vocaliza a respeito do centro. Trata-se de uma visão centrípeta. Essa voz não é constrangida por pejos. Ela é mordaz; sardônica. Seus opositores tratam o escritor com indiferença. É conhecido o episódio que envolve a tentativa do grande escritor de ingressar na Academia Brasileira de Letras. Houve duas efetivas tentativas. Uma terceira não foi levada à frente, pois o escritor retirou-a. Os motivos eram óbvios – e estavam pautados no físico – a cor da pele do intelectual mulato. Certamente, Lima era um dos maiores entre os escritores dos vinte primeiros anos do século XX. Ele foi preterido por dois motivos certamente – (1) sua origem – era um homem de origem humilde, suburbano; (2) sua cor – apesar oficialmente não existir escravidão, a cor da pele do escritor estava tatuada por uma maldição histórica. É diante desse cenário que Lima escreve o seu terceiro romance, “Numa e a Ninfa”.
O livro é um dos quatro romances escritos pelo escritor carioca. Dos quatro, é (no meu humilde ponto de vista) o que menos possui brilho. As circunstâncias em que foi escrito, talvez, tenha contribuído para essa característica. O professor Antônio Arnoni Prado diz que é “de menor notação inventiva". O próprio Lima testemunha a respeito da contingência que o cercava: “O Numa e Ninfa foi escrito em vinte e cinco dias, logo que saí do hospício". Seu texto foi escrito em outubro de 1914. Lima estava precisando de dinheiro. O dinheiro veio a conta gotas. Não era a forma que o escritor queria.
Diante do irremediável, Lima constrói uma história que procura caricaturar os personagens políticos da República Velha. Não se sabe se o pior é o mundo real ou a história ficcionalizada. Tal como na história, o Brasil é um terreno fértil para incursões arrivistas, corrupção e degradação moral de sua elite. Um exemplo é Numa, o personagem central da história. Sem qualquer relevância ou traço que o distinga, Numa, por intermédio de pistolões, consegue se tornar doutor e juiz, sem ter nenhuma predileção pelos livros. Talvez, fosse semiletrado. Seu grande objetivo era se tornar influente; subir na escadaria das influências, o que quase sempre vem acompanhado de poder. Para sacramentar essa ascensão que o conduzia por uma escadaria social, ele consegue um casamento arranjado, por interesse, que torna suas intenções materializáveis. Acabou se tornando presidente do Estado.
Apesar do aspecto caricaturesco da personagem e a dinâmica política que a envolvia, a personagem personificava os representantes políticos da República Velha. Fato que ainda eleva a degradação moral é presença de sua esposa, Edgarda. Ela é responsável por produzir os discursos que o marido, uma eminência parda, vocaliza no Parlamento. A respeitabilidade que o marido consegue fazia parte de um jogo de aparências; era algo meramente artificial. Ela é identificada com uma ‘ninfa', personagens femininas da mitologia grega, geralmente, associadas à juventude e à beleza. Edgarda era a mulher que articulava os bastidores. Alguém que conseguia manipular situações e tirar proveito de acontecimentos quaisquer.
O que impressiona nesse romance do escritor de “O Triste fim de Policarpo Quaresma" é a atualidade. Nesse sentido, pode-se afirmar sem medo que Lima é um escritor atemporal. Nossas misérias sociais e políticas continuam as mesmas. Caso vivesse em nosso tempo, o escritor teria motivos para escrever com o mesmo teor. Olhar, por exemplo, para o Congresso Nacional brasileiro nos permite ter um vislumbre de nossa mediocridade. O Brasil paga um preço altíssimo pela ignorância política do seu povo. A ignorância por aqui não é uma fatalidade; é um projeto. É curioso como os mesmos ímpetos políticos, o mesmo arrivismo, o desrespeito com a ‘coisa pública' continua a ser um projeto, um vício insuperável de uma elite faminta.
