“O mundo e a pobreza estragam a
gente”
Domingos Olimpio, em
“Luzia-Homem”.
O romance “Luzia-Homem”, do
escritor cearense Domingos Olímpio, foi publicado em 1903, três anos antes da
morte do autor. O escritor nasceu em Sobral, no ano de 1850. Estudou em
colégios do seu estado até a mudança para o Recife, onde cursou Direito na
famosa Faculdade de Direito de Recife, estabelecimento em que vários
intelectuais, filhos da aristocracia rural, estudaram. Após se formar, voltou
para o Ceará e atuou como promotor. Mudou ainda para Belém-PA e atuou como
jornalista, além de exercer a advocacia. Mais tarde, mudou-se em definitivo
para o Rio de Janeiro, a capital da recém-inaugurada República. Na Capital,
continuou a exercer o ofício de advogado, além da produção copiosa no
jornalismo.
No Rio de Janeiro, Olímpio fez
amizade com vários intelectuais. Percebeu o mundo político; suas vaidades e
arranjos internos. Buscou por duas vezes ingressar na Academia Brasileira de
Letras, mas não obteve êxito. À época, Machado de Assis ainda estava vivo. Sua
influência se fazia sentir no comando da instituição que ajudara a criar. Na primeira
vez que tentou, foi preterido por Euclides da Cunha. O ribombo que “Os Sertões”
produziu quando de sua publicação, não deu nenhuma chance a Olímpio. Vale ainda
mencionar o fato de Euclides Cunha ser o nome que descreveu o episódio de
Canudos, que se tornou um dos fatos mais comentados e propalados dos feitos
republicanos.
Na segunda tentativa, Olímpio
perdeu a disputa para o filho do escritor José de Alencar. É importante
assinalar que, nesta ocasião, Machado de Assis foi imensamente parcial, pois não
negou sua preferência por Mário de Alencar. O filho de José de Alencar se
tornou acadêmico em 1905, um ano antes da morte de Olímpio.
“Luzia-Homem” é um romance que nasceu
tardiamente. Alfredo Bosi assim se posiciona sobre ele, ao afirmar de que se
trata de uma “ingênua e bela história de uma retirante de 77, cujos modos
másculos ocultavam sentimentos bem femininos”. Nessa sucinta afirmação do
grande professor, encontra-se a chave de interpretação do livro. É necessário
explicar que o Ceará passou por uma mítica seca nos anos de 1877 até 1879. A
seca foi responsável por fazer surgir uma forte onda em forma de fluxo
migratório. Muitos escritores procuraram retratar esse episódio de grande força
tétrica. Bosi fala de um “leitmotiv da poesia oral” que muito influenciou as
produções da época. O escritor cearense Rodolfo Téofilo escreveu três livros
para retratar a catástrofe do ano de 1877 – “A fome” (1890), “Os Brilhantes”
(1895) e “O Paroara” (1899). É importante mencionar ainda Manuel de Oliveira
Paiva, que escreveu um dos livros mais relevantes sobre a descrição desse
período – “Dona Guidinha do Poço”, livro escrito em 1891, mas somente publicado
em 1951. Todas essas produções foram escritas sob a influência da estética
naturalista.
O romance mais relevante de
Domingos Olímpio utiliza elementos do Naturalismo para sustentar o seu eixo
temático. Vale relembrar que o Naturalismo é a radicalização do Realismo. Ele
transforma os personagens em joguetes do ambiente em que vivem. São impelidos
pela pulsão instintual. Em 1903, a escola naturalista já se encontrava em um
processo de esgarçamento. O livro mais relevante de Domingos Olímpio é um filho
temporão de uma escola literária que já se encontrava em processo de
esgotamento. Escritores como Euclides da Cunha, Lima Barreto, Graça Aranha e
Monteiro Lobato, apesar de diversos entre si, apresentavam uma nova estética.
Olímpio, por sua vez, parece ser caudatário de um período em que as brasas já
estavam por se apagar. Ele constrói uma personagem que abriga as
características da pureza, das musas idealizadas, mas que é forte, viril, por
isso, recebe o epíteto de “Luzia-Homem”.
O vocábulo “homem” aqui funciona
como um adjetivo, porquanto serve para caracterizá-la. Ele não a chama de
Luzia-Mulher pelo fato de forte. Ou seja, como se a força física fosse apenas
um atributo dos homens. Luzia carrega blocos de concreto e tijolos para a
construção da cadeia local. Ela é a mulher que realiza atividades que eram
impensadas para alguém do sexo feminino. Sua postura é de destemor; de
valentia. Ela enfrenta os desafios com denodo e força. Todavia, em outro lugar
da obra, verifica-se que ela cosia com esmero, destacando-se na função; e
recebendo elogios pela habilidade incomum. Assim, a personagem é um híbrido de
força e delicadeza.
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Escritor cearense Domingos Olímpio
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Há nela uma suavidade povoada
por dúvidas. Ela chora. Pensa a respeito do destino incerto. Angustia-se com a
mãe acamada. Rejeita a ideia de se casar com Alexandre, mas não se escusa de
ajudá-lo quando ele é preso injustamente. Luzia é desenhada pelo escritor como
um animal belo, paradoxalmente, delicado, mas arisco. Em alguns momentos da
leitura não deixei de rir do artificialismo da obra; do esquematismo dos
escritores do período a fim de enquadrar a criação literária, com o objetivo de
impor certos maneirismos cientificistas.
A resolução do conflito entre o
malvado soldado Crapiúna e a angélica, mas arredia Luzia acontece de forma
trágica. Crapiúna surge como antítese às virtudes de Luzia. O personagem surge
como um canalha; um sujeito malvado, que procura conquistar Luzia à força. Ao constatar
que não seria aceito pela bela moça, utiliza-se de uma estratégia medonha –
matar Luzia; e assim o faz. Crava um punhal no peito da personagem. Esta, por
sua vez, arranca-lhe um dos olhos. Luzia cai inevitavelmente morta. Crapiúna
despenca de um desfiladeiro.
“Luzia-Homem” é uma obra que
carrega consigo uma carga mítica. Ele estrutura a ideia da mulher guerreira. Luzia
é uma heroína; encarna a figura da mulher que sofre por ser demasiado bondosa e
justa. É um romance que utiliza elementos estéticos que, àquela altura, encontravam-se
em processo de erosão. Domingos Olímpio se utiliza de um ideário a respeito do interior
do país. Muitos escritores como ele procuraram recriar o interior do país,
estruturando personagens que faziam parte de uma fabulação o sobre os
indivíduos que viviam em espaços do país a serem descobertos pela ficção. O
Brasil do litoral ainda não conhecia o Brasil do interior. Acreditava-se que no
interior estava “o homem puro”, que experimentava a vida simples. Talvez, essa compreensão tenha sido originada
no Romantismo.
Domingos Olímpio não foi um escritor inovador. Afinal, Machado de Assis,
nosso expoente máximo do Realismo; e Aluízio Azevedo, nosso expoente máximo do
Naturalismo, já haviam escrito obras que evidenciam a grandiloquência do paroxismo
de suas respectivas escolas. Olímpio nos brindou com uma deliciosa história
repleta de idealizações e artificialismos, mas, por sua vez, muito bem escrita.