quarta-feira, novembro 28, 2007

Memórias

Estas palavras abaixo são o resultado de uma crônica que escrevi no ano de 2004, refletindo sobre o ano de 2003. Resolvi divulgar um fragmento. Quiça eu venha a colocar outros retalhos neste espeaço.


Estava feliz. Na segunda-feira, dia 29 de dezembro, viajei para o estado do Piauí. Fui encarregado de passar alguns dias na congregação da Quarta Igreja Presbiteriana de Taguatinga em Santa Luz. A proposta surgiu do Rev. Oswaldo que me entusiasmou para tal função. Aceitei pelo simples fato de que seria uma oportunidade ímpar de entrar em contato com novas pessoas; de visitar um lugar novo, com ares novos, com vegetação e clima diferentes. Viajar para mim sempre foi um motivo de imensa alegria. Aqueles momentos que antecedem a viagem são deliciosos. A expectativa parece possuir uma dose de mistério.
O único lamento para mim era ter que deixar a musa que encontrara, Liana C. Roquete. Pensava comigo: “Meu Deus, ficar mais de um mês longe da Liana!” – de lá eu fui para o estado de Pernambuco, visitar os meus avós e rever os familiares. Aquela situação era o único fator a gerar desconforto para mim. Todavia, arregimentei força. Seria uma experiência positiva, boa, nova. Eu voltaria mudado, com certeza. Nisso eu concordava com Heráclito. O rio da vida estava passando e, com certeza, não banharia nele duas vezes.
Recordo-me que a Liana disse para mim certa vez:
- Olha, muita gente está dizendo que quando você voltar nós nem nos reconheceremos mais. Vamos ver até que ponto o nosso namoro vai agüentar.
Ao que eu execrei mentalmente aquela sentença. Não permitiria, em minhas resoluções internas, o fato dela não pertencer mais a mim. Não haveria um “desconhecimento” em hipótese alguma.
Na manhã do dia 29, mais precisamente às 11 e meia eu estava na rodoviária. Ela também lá estava. Pus-me a olha-la langoroso. Mais de um mês de distância provocaria em mim uma tristeza insalubre. Enquanto estava na rodoviária osculou-me os lábios ternamente. Pude sentir os seus lábios adocicados. Abriguei-me no ônibus e fiquei a olha-la; enquanto o ônibus aguardava a partida, as minhas emoções se confundiam uma nas outras. Olhava-a com afeição, apreço e devoção e colocava no pensamento a certeza de que eu lucrara com o melhor dos presentes que alguém poderia ganhar. O ano de 2003, de fato, fora muito bom. Eu não tinha o que reclamar. Apesar dos tantos dissabores.
À medida que o ônibus ia saindo da rodoviária e pegando a Via Estádio, dentro de mim havia o anelo de saber o que passava na mente e no coração dela. Nos meus lábios ainda estava o gosto e o cheiro dela. Um pouco dela ainda estava em mim. Desejei como se deseja a vida que aquele gosto plasmado àquele sabor não saíssem dos meus lábios. Era bom saber que algo que me ligava a ela por meio dos sentidos. Como me enfastiei naquele momento. Um banzo enorme acometeu-se de mim. Sentia-me como os escravos degredados da África. Alberto Camus, o escritor de “A Peste” disse certa vez: “...já que o grande desejo de um coração inquieto é possuir interminavelmente o ser que ama e poder mergulhar nesse ser, quando chega o tempo da ausência, num sono sem sonhos que só possa acabar no dia do reencontro”[i]. Eu sabia que estava indo para uma viagem que me deixaria num desterro de mais de um mês e somente o “reencontro” – já pensava nele – traria-me a devida ordenação ao juízo. Enquanto os minutos passavam o gosto e o cheiro dela se esboroavam de mim. Aquilo para mim era um suplício. Sabia que logo logo não mais eu teria qualquer resquício vivo aos meus sentidos. Ficariam apenas as impressões na mente. A distância perturbadora me cozinharia os miolos. Os pensamentos, o desejo de tê-la perto de mim seriam inimigos atrozes.
À tarde eu estava no estado de Goiás. Via as paisagens fugidias que ficavam para trás. Os pensamentos se grudavam a qualquer substância. Estava deixando a família, a parentela, o meu bem querer. Aquilo era simplesmente atordoador. Os belos cenários que se insinuavam para mim, davam a impressão de que eu era um imperador e estava ali para apreciar cada polegada do meu reino. O mundo era um sonho, aquelas paisagens estavam ligadas a um palco de beleza natural. Na mente, a feição sorridente de Liana C. Roquete estava afixada num cartaz de dimensões incríveis bem na esquina da minha alma. Sentia um misto de soledade e tristeza. Um torpor estranho, anômalo, mas doce, prazeroso se erguia dentro de mim como uma cortina de fumaça. Havia chovido, por isso a vegetação estava verde. Aqui ou ali uma lagoa intermitente estava formada pelo resultado das chuvas de dezembro. Uma garça com seu pescoço longo procurava comida nas locas daquele alagado. Outras se abrigavam nos galhos secos de uma árvore já morta. Tudo não passava de uma bela exposição. Plantações imensas de girassóis a brilharem para mim. Cada um deles muito amarelos. O mar amarelo me seduzia com sua extensão incrivelmente regular. Latifúndios imensos. Aristocracia rural. Brasil Central. Divagações. De repente o cenário mudava. Eucaliptos variados se alinhavam com disciplina um ao lado do outro. Perfilamentos perfeitos. Renques disciplinados. Pensava num exército aposto, pronto para receber ordens de um superior embrutecido. Uma plantação de soja surgia silente. Um horizonte verde se formava. Queria mergulhar nesse macro-cosmos verde – pensava em minha divagação espaçada por pensamentos reais, mesclados a derivações infindas. Tinha certeza de que o eterno estava mergulhado no invólucro do efêmero. Como Van Gogh retrataria aquela paisagem? Eu era alguém privilegiado por ver e sentir todo aquele absurdo natural; uma outra paisagem existia dentro de mim; e nesta, Liana C. Roquete era senhora e soberana.
O ano de fato havia sido intenso, cheio de acontecimentos imensos. Eu saíra vivo de cada um deles. Considerava-me um vencedor. Alguém que amadurecia. Alguém que estava chegando ao estágio de uma mente adulta. Eram vaidades mesquinhas que se assenhoreavam de mim, ao ponto de um regozijo afetado surgir com candidez nos meus lábios. Queria que o mundo se curvasse aos meus pés e dissesse numa atitude humilde e resignada: “Estou aqui para te servir”. Eu lucrara de fato. O ano de 2003 fora um dos mais extraordinários da minha existência. Em todos os sentidos eu me portara com a mesura digna de um ser superior. Estava ali agora. Dentro de um ônibus da Viação Transpiauí cheio de pressentimentos graves e com a certeza que o ano de 2004 me surgiria novo, inopinado, mas com uma série de surpresas agradáveis. Estava indo para Santa Luz. Dentro do ônibus, uma malta de matutos e outros seres mesquinhos; e, eu, ali também tal qual eles. Fisionomias várias. Talvez, fossem indivíduos que trabalharam o ano inteiro. Ajuntaram dinheiro e agora estavam voltando para ver a parentada. Crianças acanhadas. Mutantes. Já haviam entrado em contato com a civilização. Eram como animais. Todos eles eram bichos com certeza; e, eu, também.
Quem se importaria com alguém como eu? Mas eu sabia que era alguém especial. Possuía o mundo dentro de mim. Possuía a existência toda em cada compartimento do meu coração. Todo o universo havia se descomplicado. Intuía. Fazia planos. Comemorava. Louvava os fatos. Agradecia os acontecimentos todos. O ano de 2003 foi diferente do ano de 2002. Eu me encontrava mais cheio de razões para creditar na vida. Não havia motivos para desenganos abruptos. Acreditava que poderia ser melhor do que estava sendo ali. Ia para o meio de um povo estranho. Talvez, por trás daqueles fatos houvesse uma efervescência ígnea de símbolos sendo gerados. Aquilo tudo significava que eu estava indo para o meio do mundo, para o meio das complicações. Guardava em mim cada pitada daquelas divagações.
Criava intenções internas. Organizava as expectativas. Tinha o um vasto mundo à minha frente. Eu precisava apenas abrir os braços para segurá-lo. Tinha o céu ao meu alcance. Era estender os braços para pegar cada uma das estrelas que se exibiam. Mastigava a sentença poética deliciosa plena de infância de Guilherme de Almeida: “Um gosto de amora/ comida com sol. A vida/ chamava-se: Agora”[ii]. Gigantismo. Sentimento de posse do mundo. Beber a goladas sôfregas cada gota da vida. O desejo enorme de se sentir grande, volumoso, imenso para o mundo. Lá me ia.
Na Retropesctiva que fiz do ano de 2002, o texto termina da seguinte forma:

Nas palavras que enchi o papel, percebi uma preocupação existencial e filosófica subjacentes. Nos outros anos, eu não me utilizei das tais. Sei que omiti muitos dos fatos desenrolados no ano que se passou. Não mencionei minha mãe que sente-se cada vez mais sozinha e esquecida – impressão dela. Não falei dos meus irmãos que parecem seguir o mesmo caminho que eu. Os arquétipos, às vezes, não estimulam à virtude, todavia conduzem à mediocridade. Não falei sobre os problemas que engolem o país como um faminto sorvedouro. Não comentei os problemas que querem enfraquecer a esperança.
Está começando um novo ano – ou ano novo? – tanto faz. a verdade é que não devo esmorecer. Como dizia o poeta Renato Russo: “Às vezes faço planos; às vezes quero ir a algum país distante voltar a ser feliz”. E quando penso assim, esqueço que a felicidade mora ao lado. A felicidade é pertencer e conhecer a Jesus Cristo. “Não há outro nome embaixo dos céus pelo qual importa que sejamos salvos”. A felicidade não está em Kierkegaard, nem em Nietzsche, nem em Paulo, nem em Rubem Alves. A felicidade está no Filho do Homem. No carpinteiro humilde de Nazaré. Que sendo Deus, fez-se homem por causa de nós.
Sei que passarei por novas dificuldades – como já estou passando – mas sei que em tudo eu já sou mais que vencedor. Diz são Francisco de Assis que se “é morrendo que se nasce para a vida eterna.” Tenho grandes ideais. “Os ideais são como as estrelas. Na noite escura elas apontam o caminho”, como escreve Rubem Alves – todavia, creio que essa frase foi tomada de Abraham Lincoln. Em outra frase Rubem Alves cita Bachelard: “Um coração frágil gosta de valores frágeis”.
A minha fragilidade me impulsiona a buscar a sensibilidade. Não vivo por comiseração, remoendo as minhas chagas e alimentado uma autocomiseração, próprio dos que vegetam. Respeitar as individualidades é importante quando se quer preservar as espécies e a multiplicidade do gênero humano. Sou adepto do humanismo cristão. Do humanismo que crer no homem, desde que ele se submeta irrestritamente a vocação do Criador. C. S. Lewis diz que “o universo sempre se mostrará fiel quando você o testa com justiça”. Concordo com esta sentença de C. S. Lewis, porque o homem só conseguirá a autenticidade que tanto procura quando ele testar os fatos com fidelidade. E onde se encontra uma fidelidade que garanta a verdade e a autenticidade? A resposta eu dou sem hesitar: Cristo. Em Cristo o mistério da criação é consumado. Em Cristo encontramos o nosso destino e a nossa redenção. Quando medimos as coisas com os óculos de Deus – Cristo – encontramos a fidelidade
[iii].

Estas eram palavras que haviam adquirido um valor especial para mim. De fato, muito daquilo que presumi e imaginei aconteceu no ano de 2003. a diferença que vejo hoje é que enquanto eu saí do ano 2002 com rugas imensas na epiderme da minha alma, a passagem de 2003 para 2004 é alvissareira. Augúrios positivos se levantam como ootdoors. A retrospectiva de 2002 estava atochada de uma atitude merencória. Uma solidão enfermiça que brotou como solução para permanecer vivo. Apenas uma solidão poética. Mal do século? Não. Apenas uma posição encontrada para continuar a ser pequeno e se guardar do mundo. Um refúgio, uma fortaleza construída como um ponto forte para se guardar do mundo.
Mas a vida que ra “agora”, no dizer de Guilherme de Almeida brotava com muito ímpeto. Queria ver as folhas verdes e vicejantes. Assim, o ano de 2003 se ia. Tenho plena convicção que o ano que no ano de que se passou, muitos outros fatos se deram com profusão. Imiscuí aqui aqueles que tiveram uma importância capital ou foram vindo à vida na superfície da mente. Outro ano está iniciando. Outros registros se darão; outros fatos surgirão com força e pujança. Salomão ajudar-me-á este ano de 2004: “O insensato não tem prazer no entendimento, senão em externar o seu interior” (Pv 18.2). Discrição apenas, Carlos Antônio e sigamos pela estrada da vida. O amor mora ao lado. A vida está soprando no vento. Sorvo, apenas sorvo; inalo e respiro.

[i] Camus, Alberto, A Peste, Círculo do Livro, São Paulo, 1947, p. 88
[ii] Cortella, Mario Sergio, Não espere pelo epitáfio – provocações filosóficas, Editora Vozes, São Paulo, 2005, p. 89
[iii] Retrospectiva III, 19-04-2003, pp. 19-20

Carlos Antônio M. Albuquerque

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