domingo, junho 02, 2013

200 anos de Kierkegaard - algumas palavras de admiração

Aprendi a admirar o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard ainda nos anos de seminário. A primeira vez que li algo a respeito dele, fiquei estarrecido com a sua paixão pelo paradoxo. O texto que li àquela época falava sobre o noivado do filósofo com a bela Regina Olsen. Kierkegaard após consumar o noivado, pede logo em seguida para desfazê-lo. Sua personalidade complexa aplicou um golpe nos sonhos da jovem Regina, que ainda tentou reatar o noivado, mas sem sucesso.

Durante muito tempo procurei informações sobre o filósofo. Comprei livros. Li a respeito dele. E, sobretudo, li alguns livros dele - Diário de um sedutor, Temor e tremor e O desespero humano. Kierkegaard sempre foi para mim um grande mistério. Sou um admirador do seu ideal de espiritualidade. É possível colocá-lo na categoria de um Agostinho ou de um Pascal, que foram nomes que viveram de maneira exponencial a fé cristã em uma época em que a razão prevalecia sobre os anseios existencializantes da interioridade humana.

Mês passado, precisamente, dia 5 de maio, o mundo comemorou duzentos anos do nascimento do filósofo. Kierkegaard passou um bom tempo no anonimato, pelo menos até as décadas de 40 e 50 do século XX, quando se deu uma onda existencializante na filosofia - Sartre, Jaspers, Heidegger, Camus e até mesmo os filósofos de Frankfurt etc, resgataram a filosofia do dinamarquês. Tanto foi assim que ele recebeu o epíteto de "pai do existencialismo". Não é de se estranhar que ele tenha ficado algum tempo incógnito. Afinal, a fria e distante Dinamarca ficava fora do cenário dos grandes debates. Kierkegaard escrevia em dinamarquês. A língua da filosofia era o francês ou alemão, sendo tolerado, quando muito, o inglês. O que poderia vir da longínqua Jutlândia?

O filósofo era uma figura, no mínimo, estranha. Escrevia sobre determinadas categorias as quais não eram referenciáveis. Os seus patrícios não o entendia. Nascido em 1813 e morto em 1855, Kierkegaard mesmo estando longe da arena filosófica não ficou alheio às grandes controvérsias filosóficas do seu tempo. Viajou à Alemanha para ouvir, por exemplo, uma palestra de Schelling. O século XIX é o século do idealismo hegeliano e, mais tarde, dos ideias materiais de Darwin, Comte e Marx. Onde se poderia colocar a filosofia singular de Kierkegaard que postulava que o individual prevalece sobre o universal? Ou seja, ao invés de se começar a análise do gênero para a espécie, deve se fazer o contrário, colocando o indivíduo sobre todas as coisas. É a existência singular do sujeito que o torna único ante todas as realidades.

Ele parecia "o patinho feio" da filosofia, fazendo uma referência ao seu conterrâneo Hans Christian Andersen. Enquanto a filosofia hegeliana explicava todas as coisas, bem como a ciência em vertiginoso desenvolvimento, Kierkegaard diz que faltava discutir sobre o indivíduo com toda a sua singularidade. Era pelo crivo do individual que a história deveria ser medida. Para ele, o sujeito precisa "decidir ser". E o instante da decisão é a loucura pela qual o universo inteiro deve parar, observar. O homem é aquilo que escolhe ser, é aquilo que se torna. E "tornar-se" é a maior das aventuras. Daí, que surge a sua máxima: "procuro uma verdade que seja verdadeira para mim", pois tudo para diante do indíviduo. São os seus olhos que observam a contigência, pois a existência é o reino do devir na história. 

Kierkegaard é o homem avesso a qualquer sistema que prenda a possibilidade de ser do sujeito individual. A possibilidade é a mais pesada e árdua das categorias, pois sugere uma escolha de fé e 'a fé é aquilo que deve sobrar quando tudo acaba'.

Kierkegaard era um "poeta cristão". Cena curiosa é aquela em que o diabo aparece para a personagem principal de Doutor Fausto, de Thomas Mann. Quando da chegada do diabo, este percebe Adrian lendo um dos livros do filósofo dinamarquês. O diabo então profere: "Então, lendo o cristão?" Em outras palavras: Kierkegaard foi aquilo que escreveu. Tornou a sua noção de fé e suas experiências em algo com sentido. Podemos dizer que ele encontrou a sua verdade. Sua filosofia era um estilo de vida. Como ele mesmo dizia: "ninguém pode se pôr em meu lugar diante de Deus". 

Selo de comemoração aos 200 anos de nascimento do filósofo
É diante de Deus, que o sujeito fica nu e se torna aquilo que deve se tornar. Daí, deerivam dois conceitos que são inextricáveis à obra do filósofo - o conceito de angústia e o conceito de desespero. A angústia é típica do homem na sua relação com o mundo; e o desespero é próprio do homem na sua relação consigo mesmo. As raízes do desespero estão em não querer se aceitar nas mãos de Deus. Quem está em desespero ainda não está consigo mesmo, ainda não se achou plenamente. Aqui cria-se a ideia do paradoxo, pois ao passo que mais me firmo na fé e me aproximo de Deus e, fujo do desespero, mais abomino o mundo e me torno pronto para a eternidade. 

Nesse sentido, é necessário mencionar os três estágios - o estético, o ético e o religioso. O estético seria aquele se vale dos prazeres. É o nível na qual os homens naturais se encontram.  O segundo estágio é o ético em que prevalece a observação das regras morais, dos códigos jurídicos. E o terceiro e último é o religioso, ou seja, o estágio em que o sujeito individual se torna a si mesmo e vive reconciliado com a eternidade.

Esse sujeito que possui uma consciência psicológica da sua condição é o "cavaleiro da fé". Fé não é meramente crer, mas é ressignificar a realidade. A filosofia de Kierkegaard sempre se constituiu em algo a ser admirado para mim. Sempre lembro dele uma hora ou outra. Ele falava daquilo que é mais fundamental na vida: tornar-se a si mesmo com todos os seus implicativos. Numa era a qual notamos um nível tão grande barbarismo e superficialidades, o pensamento de Kierkegaard surge como um desafio para que possamos nos encontrar na curva da existência do devir histórico.


2 comentários:

literaturaeengajamento disse...

O artigo consegue expor com clareza o pensamento do dinamarquês, brilhante.

Carlinus disse...

Fico feliz que tenha gostado, camarada!

Abraços!