terça-feira, junho 04, 2013

Uma marcha conservadora e reacionária

Viver em sociedade leva à construção de determinados pactos. Thomas Hobbes diz que a construção do Estado foi uma necessidade para que os homens não se digladiassem. Assim, a finalidade do Estado é salvaguardar o direito de todos. Todavia, o meu direito não deve ultrapassar a esfera de direito do outro  - e vice e versa. Assim como é direito, em um Estado capitalista, eu ter o direito à propriedade privada, os outros cidadãos também o usufruem desse mesmo direito. Assim, as leis que existem têm por finalidade proteger o meu direito e o direito do outro para que não sejam violados. Quando o meu direito ou o direito do outro é colocado numa categoria que indica o prejuízo de uma das partes, aparece a figura do Estado para fazer com que os litigantes cheguem a um acordo e a ofensa seja reparada.

Essa minha explanação inicial, leva-me a ponderar sobre dois aspectos da Marcha da Liberdade de Expressão (sic), marcado para o dia 5 de junho, em Brasília. Conduzindo tal evento está o clérigo controverso e obscurantista Silas Malafaia, alguém que tem se destacado pelas posições conservadores e desassistidas de razão nos últimos tempos. Tal "marcha" me faz refletir sobre três coisas:

(1) A repetição da história. No dia 19 de março de 1964, militâncias conservadoras também marcharam em vários locais do Brasil, sob a alegação de que o estavam fazendo em nome da família e dos bons costumes. A marcha tentava alertar a sociedade para o "mal vermelho" do comunismo e do governo de Jango. Havia uma onda que descaracterizava "os movimentos sociais" e a condução do Brasil por João Goulart. Um religioso chegou a proferir: "Hoje é o dia de São José, padroeiro da família, o nosso padroeiro. Fidel Castro é o padroeiro de Brizola. É o padroeiro de Jango. É o padroeiro dos comunistas. Nós somos o povo" (sic) (daqui) Não se trata de mera coincidência, pois politicamente esses movimentos com "fachada democrática" são meramente revanchistas, preconceituosos, reacionários e afecciosos. Curiosamente, a chamada da "A marcha da família com Deus pela liberdade", redundou em um golpe militar, que levou o Brasil a mergulhar em um dos seus momentos mais nebulosos de sua história. Lamentável. Nada na história é coincidente.

(2) Hobbes diz algo curioso em O Leviatã e que serve de adendo: "Não há quase nenhum dogma referente ao serviço de Deus ou às ciências humanas de onde não nasçam divergências que se continuam em querelas, ultrajes e, pouco a pouco, não originem guerras; o que não sucede por falsidade dos dogmas, mas porque a natureza dos homens é tal que, vangloriando-se de seu suporto saber, querem que todos os demais julguem o mesmo". A fé religiosa é uma questão de perspectiva cultural. E os movimentos de cunho religioso sempre andam na contramão da história. Sempre tendem ao conservadorismo e a uma visão reducionista da realidade. Assim como eu não posso tornar a minha vontade uma tirania, o outro não deve tornar a sua vontade em uma tirania contra mim. Analisando os fatos friamente, quem atua como um tirano nessa história, os movimentos religiosos ou as minorias que estão sendo atacadas por essa onda conservadora? Todas as sociedades da terra são arranjadas segundo os ditames bíblicos ou o entendimento bíblico é o resultado da percepção de uma cultura, a saber, a judaica?

Sinceramente, eu entendo que a maior parte dos mandamentos morais defendidos pelos cristãos são aspectos da cultura judaica cristalizados no tempo. Os judeus conseguiram universalizar a sua cultura por meio do cristianismo. Será que a cosmovisão judaica é a única que existe no universo e deve "violentar" o direito dos diferentes? Creio que não. O maior erro desse movimento religioso que protesta contra a união homoafetiva é tentar tornar o seu entendimento religioso em uma regra para o mundo, em uma ditadura com fins universais. 

(3) Fico pensando que durante a história, vários foram os momentos em que algumas posturas foram tomadas de maneira irracional. Por exemplo, nos primeiros séculos da era cristã, a Igreja realizou um Concílio para verificar se as mulheres possuíam alma. Este fato parece patético, quando analisado nos dias de hoje. Mas entendia-se, àquela época, que a mulher era um ser inferior. Atualmente, rimos desse fato e o achamos caricato. Da mesma forma, penso que a defesa dessa marcha famigerada esbarre em algo bem parecido. Talvez daqui a 50 anos, a próxima geração que surgirá ficará rindo da nossa geração e achará caricato o fato de debatermos com tanta fúria e parcialidade, hoje, essas coisas. Penso que seja uma questão está posta e que não possui volta. A religião com seus dogmas "empoeirados" pelo tempo continuará sua militância errática e barulhenta, mas não terá possibilidades de refrear o que já existe. A história é construída dialeticamente.


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