domingo, fevereiro 09, 2014

"As veias abertas da América Latina", de Eduardo Galeano, algumas palavras após a leitura

"A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será" - Eduardo Galeano

Sempre tive a intenção de ler As veias abertas da América Latina, do escritor uruguaio Eduardo Galeano, um clássico sobre economia, história e política. O livro foi escrito no início da década de setenta, mas é "lamentável", como diz o próprio autor no posfácio para edição de 2010 da L&PM (que li), que ele continue "atual" em sua denúncia incisiva. Trata-se de obra que encontrou, ao longo de mais de quarenta anos, inúmeros desafetos. À época das ditaduras explícitas, a obra foi proibida em países como Uruguai, Chile e Argentina. Ainda ontem, li uma resenha de um blog da Veja, que falava da ocasião em que ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em 2009, presenteou Barak Obama, seu desafeto ideológico, com um exemplar de As veias abertas, autografado por Galeano. Aquilo gerou um celeuma nos Estados Unidos, guindando o livro para a lista dos mais vendidos em menos de 24 horas, na toda poderosa Amazon.

O jornalista, em seu forte tom de ojeriza, defenestrou o uruguaio. Chamou-o de "herbívoro" ideológico. Segundo ele, Galeano apenas afirma cataclismos em sua obra; põe o continente em uma posição de nanismo; é como se tivesse surgido para perder. O livro é viciado em seu problema de estima. E dizia que o Brasil hoje é o líder da região, exaltando a posição hegemônica do país, sem se importar com o resto do continente, como se não tivéssemos nada em comum. Sua posição era firme no sentido de ridicularizar as informações trabalhadas por Galeano e seu forte diagnóstico contra a exploração secular a qual a América Latina vem sendo submetida em mais de quinhentos anos de história. Seu asco ideológico, como se pode perceber, não enxergou méritos na pesquisa do uruguaio; não estava interessado em analisar o nosso passado comum e nossa condição de países periféricos; é como se o passado em suas dores de sangue não contassem. A resenha do jornalista em seu forte tom de mofa, até mesmo questiona o fato de Galeano, um escritor branco e de olhos verdes, tomar a dianteira e se arvorar a ser o porta-voz do continente. Não sei se se tratava de ignorância ou desonestidade intelectual.

O fato é que As veias abertas é um texto apaixonado e apaixonante. Apesar ter por intenção fazer a denúncia do estupro sofrido pela América Latina ao longo do seu curso histórico, o texto se mostra leve, repleto de metáforas, de construções que primam pelo valor poético. Ou seja, foge do hermetismo dos laureados intelectuais e acadêmicos alambicados, que gostam de enviesar sentenças a fim de serem admiradores como profundos e difíceis. O texto de Galeano, talvez, tenha alçado a perenidade pela simplicidade. A simplicidade aqui citada não passa pelo simplismo. Galeano mostra o quão respeitável foi sua pesquisa pela quantidade de fontes citadas. Ele não se limitou apenas com as traduções do seu país. Percebe-se de forma clara que ele viajou para os locais os quais citou. Tanto é assim que as citações que surgem no livro dizem respeito ao país da qual ele fala. Por exemplo, se ele fala do Brasil, utiliza Darcy Ribeiro, Celso Furtado ou Caio prado Jr. - e assim por diante.

A tese do livro é simples: Galeano mostra como a América Latina desde sua origem é refém da gana parasitária dos países europeus - primeiramente Portugal e Espanha; logo em seguida, Inglaterra; e nos dias atuais, Estados Unidos da América. O escritor nos revela como se deu o criminoso extermínio de civilizações como a asteca por Hérnan Cortés, espanhol cujo interesse era levar o possível ouro do México para a Espanha; maia e inca. O contato do homem pré-colombiano foi traumático. O europeu não trouxe apenas a ganância; trouxe também a peste, o sarampo, e tantas outras enfermidades desconhecidas pelos nativos. É contado ainda como as índias foram estupradas, violadas, pela lascívia impudica dos colonizadores.

Galeano revela ainda como se deram os ciclos econômicos do continente. O Brasil, por exemplo, desde o início sempre foi visto como uma mina que tinha que dar tesouros a Portugal. Tanto é assim que nunca houve a tentativa de desenvolvimento de uma economia interna por aqui. Tal fenômeno se alastrou pela América Latina inteira. Nenhum país teve o pleno desenvolvimento econômico. Todos deveriam exportar suas riquezas para enriquecer a metrópole. Portugal primeiramente viu que a cana-de-açucar era o produto lucrativo e, por isso, alastrou essa monocultura no Nordeste brasileiro, uma das regiões mais ricas do mundo em pleno século XVI. Tal fato, como alega Galeano, foi um tragédia para o Nordeste, pois segundo ele, uma região que vive da monocultura passa por grande ameaça ("O povo que confia sua subsistência a uma só produto, suicida-se" - José Martí, herói nacional de Cuba). Se a monocultura entrar em colapso, a derrocada é absoluta. Isso se deu com o Nordeste. Os holandeses conseguiram desenvolver técnicas mais apuradas de plantio e produção de cana-de-açucar e tiraram o monopólio de Portugal. A proximidade física com a Europa também privilegiou o sucesso dos holandeses. Com o fim do ciclo glorioso da cana-de-açucar, o centro econômico migrou para o Centro Sul do Brasil, o que fez com que o outrora faustoso Nordeste dos coronéis e dos engenhos, ficasse à míngua com suas superstições e o povo em estado de penúria.

Tanto é assim, que segundo Galeano, a Guerra do Paraguai foi um dos episódios de maior comicidade e tragicidade da vida do continente. À época em que o tacão hegemônico do capital havia migrado de pólo e deixado Portugal e Espanha, o continente caiu nas mãos de outro explorador mais ardiloso e esperto - a Inglaterra. O capitalismo em seu estágio evolutivo e fortemente desenvolvido na Inglaterra, que passava pelo sucesso de seu ciclo industrializante, "exportou" a ideia de "livre mercado". Como era o país mais poderoso da época, a Inglaterra mandava economicamente no mundo. O Paraguai havia conseguido desenvolver uma relativa autonomia econômica, a exceção do continente. Havia conseguido, por conta própria, firmar de forma competente o desenvolvimento de um mercado interno, uma indústria incipiente, mas que dava conta das demandas nacionais. Era um dos países mais prósperos do continente. Ou seja, não dependia da economia inglesa - e nem comprava os produtos industrializados da terra da rainha. Era uma ameaça. Outros países poderiam, também, fazer "o dever de casa" que o país havia feito, o que constituía um grande perigo para os ingleses. A Inglaterra procurava meios para colocar o Paraguai em sua zona de influência. A guerra foi a oportunidade de ouro que ela teve. Brasil, Argentina e Uruguai se uniram para lutar contra os paraguaios. A Inglaterra, por sua vez, financiou a guerra. Emprestou dinheiro aos três países. Como era de se esperar, o Paraguai perdeu o conflito. Teve boa parte de sua população dizimada; suas indústrias nascedouras arruinadas; sua oportunidade de despontar como país rico, mutilada; e pedaços de seu país, "saqueados" como despojos de guerra. O fato é que, ao final, os ingleses possuíam quatro vítimas - três países endividados e com a sensação de que eram "vitoriosos" e um outro completamente desmantelado, como se pode ver ainda hoje. 

Atualmente, o Estados Unidos exercem a sua influência sobre a América Latina. Suas garras de aço estão "enfiadas" na garganta do continente. Sua arrogância e sua interesse são extremos. Ele teve uma colonização diversa daquele que teve seus vizinhos. Seu crescimento se deu de forma grandiosa. Se apropriou de extensões de terra que no passado pertenceram ao México - mais de quarenta por cento do território mexicano. Suas multinacionais estão em toda parte. Sua necessidade pelo minerais do continente; sua ânsia por petróleo; sua força imoral; seu protecionismo exagerado. São defensores radicais do livre mercado, mas não permitem que os produtos dos outros países invadam o seu mercado. Semeiam bancos por todo o continente, mas proíbem que um cidadão americano deposite dinheiro em um banco que não seja americano. Foram os grandes financiadores da ditaduras do continente, projetos políticos esses que mataram milhões de cidadãos e deixou uma herança de atraso de reacionarismo conservador no continente.

O livro é de leitura obrigatória para todo aquele que deseja conhecer melhor a história comum do continente. Há mais coisas que nos unem do que nos separa. É por isso, que Galeano diz que o livro não perdeu a sua "atualidade" - infelizmente. Nesse sentido, as veias, os tecidos, os músculos, os sentidos continuam sangrando, derramando dor e uma agonia asfixiada. São por descrições como essas que o livro se mostra tão contundente e relevante. Com certeza, o jornalista que fez a crítica ao livro estava equivocado. Ou ele não leu o livro ou agiu como a má fé tão costumeira da direita, que nega a história, pois como diz Galeano: "Os meios de comunicação estão a serviço de uma visão conformista história".

3 comentários:

Ramiro Conceição disse...

Carlinus,
após refletir sobre alguns de seus textos, três marcaram-me profundamente: aquele sobre o Rubem Alves; aquele sobre a Rosa de Luxemburgo; e aquele outro sobre o anti-esquerdismo. Desta maneira, gostaria de deixar aqui minha saudação poética ao blog…
*
*
APOTEOSE
by Ramiro Conceição


Se não crês em mim tal qual amigo
então não me vês, mas um inimigo
que carregas dentro e que te devora,
que, a te furtar, está nesse teu agora.

Amar é não plantar carências…
Ah, essas farpas da existência!
Rascunhos são a nossa essência.
Dos fracassos  se faz ciência.

Trocar amigos por inimigos
é do mar, com o mal, roubar o sal
no escuro d’estrelas embrulhadas.

Para provar que sou amigo, digo:
amar é crer… em nossa hipótese
e às cegas ver a nossa apoteose.
*
*
*
PS: Carlinus, gostaria de mencionar que tenho sérias restrições à Cuba e também ao processo histórico que está a ocorrer na Venezuela…

Ramiro Conceição disse...

Carlinus,
após refletir sobre alguns de seus textos, três marcaram-me profundamente: aquele sobre o Rubem Alves; aquele sobre a Rosa de Luxemburgo; e aquele outro sobre o anti-esquerdismo. Desta maneira, gostaria de deixar aqui minha saudação poética ao blog…
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APOTEOSE
by Ramiro Conceição


Se não crês em mim tal qual amigo
então não me vês, mas um inimigo
que carregas dentro e que te devora,
que, a te furtar, está nesse teu agora.

Amar é não plantar carências…
Ah, essas farpas da existência!
Rascunhos são a nossa essência.
Dos fracassos  se faz ciência.

Trocar amigos por inimigos
é do mar, com o mal, roubar o sal
no escuro d’estrelas embrulhadas.

Para provar que sou amigo, digo:
amar é crer… em nossa hipótese
e às cegas ver a nossa apoteose.
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PS: Carlinus, gostaria de mencionar que tenho sérias restrições à Cuba e também ao processo histórico que está a ocorrer na Venezuela…

Carlinus disse...

Perfeito, Ramiro! Obrigado pelo comentário. Fico lisonjeado pelas leituras feitas por você - leitor tão treinado e perspicaz. Respeito a sua posição ideológica. Isso não nos torna antípodas. Pelo contrário. Falemos de poesia; falemos das coisas da vida; falemos de Elomar e Xangai; falemos sobre as crônicas da existência.

Abração!

P.S. Ah! Obrigado pelo belo poema.