domingo, fevereiro 16, 2014

Uma crônica inacabada sobre minha viagem a Pernambuco


"Ter pátria é ter razão para chorar"
Mia Couto

Decidi visitar a terra onde nasci. Hesitei por alguns dias. A dúvida surgiu, pois fiquei a pensar sobre qual seria o meio que utilizaria. Divaguei. Decidi, por fim, ir de ônibus. A decisão surgiu após uma caminhada. Fui a uma agência próxima de minha casa e comprei o bilhete. 36 horas na estrada, aboletado em um meio de transporte gerador de cansaço. A questão: "por que ir de ônibus?" Essa era a indagação feita pela minha esposa. Queria reviver momentos. Puxar os nacos adormecidos de experiências vividas de quando eu era criança. Peguei uma rota impensável e estúpida. 

               
Saí de Brasília, no sábado, dia 11 de janeiro, às 14 horas, com destino a Picos, cidade do estado do Piauí. Minha intenção era enxergar as entranhas de um Brasil esquecido, de um Brasil que vive imerso na letargia; queria visualizar a tessitura de uma porção do nosso país que não surge nas novelas da Rede Globo. Premeditei essas intenções pretensas e assim aconteceu.  
                 
O grande desafio de se viajar por muitas horas de ônibus é o cansaço resultante. A posição cacete. As minudências da letargia. As paradas em enxovias repugnantes. Banheiros fétidos. Comida ruim. Tratamento ordinário, dispensado por funcionários mal preparados. Acostumados a lidar com atropelos à clientela, olham-nos como se fôssemos bichos insignificantes que precisam de um favor.
                 
Foto tirada por mim em uma das cidades do Piauí
O Brasil é um país assentado em contrastes. É curioso perceber o Centro-Sul tão desenvolvido e o Nordeste tão atrasado, tão fincado em ignorância e superstições variadas. Há dez anos atrás fiz essa mesma viagem. Naquela ocasião, fiquei por 21 dias no município de Santa Luz, no Piauí, e de lá fui para Pernambuco. Dessa vez, passei pelos mesmos locais que passei daquela vez. Pouca coisa mudou. O ponto positivo está no fato de que as rodovias federais estão em ótimo estado. De Brasília, até a minha cidade, percorrendo mais de dois mil quilômetros, passando por cinco estados - Distrito Federal, Goiás, Bahia, Piauí e Pernambuco – tudo na mais perfeita qualidade. Penso que tenha sido resultado do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) dos governos Lula/Dilma. Todavia, observando como espectador comum, não divisei grandes mudanças na miudeza dos vários municípios pelos quais passei. Tudo na mais intacta inamovibilidade. Há, assim, uma homogeneidade no ontem e no hoje.
                 
Foto tirada por mim da região one fui criado
O Nordeste continua encimado em seu atraso interiorano. Fiquei impressionado com o Piauí. Cidades tacanhas, vilarejos incipientes; o chão gretado; a vegetação rala; rios mortiços; poços de água de um amarelo esverdeado a maior parte do caminho. Ao passar pelo interior de Pernambuco, tentei fazer uma malabarismo mental para arranjar um pensamento de como o povo consegue viver em região tão falta de oportunidades e recursos. Os homens da região vivem zonzos sem terem o que fazer. O brasileiro do Centro-Sul rico, alijado nas esteiras do progresso, antes de criticar as políticas sociais do governo, deveria visitar o interior do Brasil e sair do lugar comum. Existe uma ignorância do brasileiro com relação ao seu próprio país. Não conhecemos satisfatoriamente quem de fato somos e como a nossa história de saques e vilipêndios foi construída. Assim, penso que um dos exercícios mais éticos e cidadãos, de cada brasileiro, deveria ser conhecer o seu país antes de embarcar para a Disney ou Miami.
                 
Somos iludidos com o presente. Fazemos uma crítica sem critérios e sem conhecimento de causa. Nossa história foi construída em meio à violência. O interior do Brasil ainda nos faz lembrar uma Rússia czarista; uma sociedade firmada em compreensões medievais, alicerçada em tradições de outros tempos. Como tudo isso ocorreu? Por meio da violência e da rapinagem econômica. Quando me vem à mente a frase tão conhecida de Euclides da Cunha, autor de Os Sertões - “O sertanejo é antes de tudo um forte” -, passo a ser entendedor do que ele tentou exprimir em sentido amplo. Daqui de onde estou escrevendo essas linhas magras, excessivamente magras, contemplo um sujeito com uma enxada trabalhando no sol inclemente das dez e meia da manhã. Ou seja, o sertanejo arenga, cisma, desfere golpes contra a vida, numa tentativa de sobrevivência. A sua briga com a enxada é uma metáfora da própria existência. O Nordeste já foi a região mais rica do nosso país. Enquanto produzia cana-de-açúcar, sua importância econômica transferiu-se para outro lugar do país.
                
 A mídia cisma em mostrar o Nordeste do litoral, aquele que o mesmo Euclides da Cunha disse que havia uma separação do outro Nordeste do interior. Já estive nesses “dois nordestes” e é nítida a apartação criada pelo capitalismo.
                
Foto tirada do local onde brinquei boa parte de minha infância. A ressonância de tudo isso ainda vive dentro de mim.
 O outro dia assisti a uma palestra de Ariano Suassuna e uma fala dele me chamou atenção. Disse ele que é possível encontrar a Idade Média no Nordeste. Pude atestar isso em dois momentos: (1) enquanto atravessava o interior de Pernambuco e o interior do Piauí (mais naquele do que neste), constatei que cada cidade tem a imagem de um santo ou um padroeiro. Ou seja, existe uma forte resiliência do sertanejo à vontade do sobrenatural. A vontade divina é uma força geradora de temor. O sertanejo leva a sua existência conforme “deus quer”. O catolicismo colocou as suas garras no imaginário do povo e expeliu o veneno de uma superstição medieval, que domina e tangencia a interpretação do mundo. A religião forte balança a vontade do sertanejo. Em nome dela, ele faz romarias; recita falas; declama rezas a fim de amortecer os maus augúrios de um deus carrasco e cheio de dengos. (2) as cantigas. Ontem, enquanto ia para a cidade, tomei uma lotação e fui ouvindo a voz do povo com o propósito de me abeberar das ressonâncias sonoras dos pernambucanos. Na condução, alguém cantava uma espécie de canto triste, melodramático, um repente de dor, que falava de amores não realizados; o tema da melodia tratava de um sujeito que morria por ingerir álcool em excesso por causa de uma paixão não correspondida.
(...)

Escrito e não finalizado, dia 15 de janeiro, no Sítio dos Melos, região pertencente ao município de Vitória de Santo Antão, minha cidade natal, Pernambuco.

P.S. Outro dia encontrei um colega que há muito não via. Ele me indagou sobre as minhas férias. Quando contei sobre a viagem que fizera, ele disse que isso é coisa de pessoal de "esquerda", não deixei de dar uma boa risada.


2 comentários:

Ramiro Conceição disse...

Bela, mas angustiada reflexão, Carlinus…
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Recentemente, fiz uma viagem pelo litoral norte e sul do ES e BA, respectivamente. Constatei o mesmo que você: as estradas federais e estaduais estão em boas condições. Todavia, há algo preocupante em todos os lugares (Conceição da Barra, Iraúnas, Costa Dourada, Pedro Canário, Mucuri e Nova Viçosa): uma estagnação econômica... Verifiquei também uma questão seriíssima (e talvez seja a causa da imobilidade mencionada): o mar está a penetrar nos lugarejos. Relataram-me a existência de regiões nas quais a maré já avançou 100 metros. Em Mucuri, durante uma corriqueira caminhada, é comum se deparar com barrancos arenosos de 4 metros de altura e, facilmente, defronta-se com destroços de habitações recentes.
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Conceição da Barra foi a única cidade na qual o poder público tomou alguma providência: piers gigantescos foram elaborados, todavia, sem um planejamento urbanístico; a orla ficou “fria”, descaracterizada… Levando-se em consideração que a principal atividade local é o turismo, os aterros tornaram-se colossais espaços inúteis ao lazer (não há árvores ou bancos, ou abrigos ao sol…; não há banheiros públicos: é um verdadeiro desafio caminhar com crianças na orla); sem dúvida, gente sem pedigree mamou e está a mamar na areia: coisa brasileira…
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Nas outras cidades mencionadas acima, a questão do mar tem sido precariamente encarada, isto é, pequenos empresários (donos de pousadas, hotéis, botecos - por enquanto - à beira da praia e outros) têm, por iniciativa própria, sem qualquer apoio municipal, estadual ou federal, buscado soluções caseiras: por exemplo, adquirem algumas toneladas de pedras e misturam com vários metros cúbicos de toras de eucalipto e, dessa maneira, elaboram um compósito para ser enterrado à frente de suas propriedades, quer dizer, fazem um pequeno píer…; tal solução tem apresentado resultados desastrosos: os piers mais resistentes (os mais caros) desviam a maré para os terrenos adjacentes e, assim, acelerando o processo de erosão… Resumo da ópera: conversei com alguns deles e notei, sem qualquer dúvida, um olhar desesperado diante do futuro; alguns já estão a vender seus negócios, mas – cadê o comprador?; nem vou mencionar aqui a categoria dos trabalhadores associados a tais locais (as cozinheiras, os jardineiros, os sorveteiros, os pipoqueiros, os quituteiros, os pescadores, os garçons, os cantadores, os escultores, os músicos e etc.); não tenho qualquer dúvida, se não forem tomadas medidas urgentíssimas: o litoral norte do ES e o litoral sul da Bahia desaparecerão economicamente… Alguns sintomas já começaram a aparecer: por exemplo, Pinheiros, cidade não litorânea, mas muito próxima daquelas mencionadas, já é a mais violenta do ES; em Mucuri, BA, em minhas andanças, pelas pequenas matas no entorno da cidade, constatei estarrecido verdadeiros abates, açougues clandestinos, ou seja, encontrei carcaças inteiras desossadas a céu aberto…: certamente, tal fenomenologia social é um prenúncio dantesco para outro tipo de ossadas.

Carlinus disse...


Eu não sabia de tais coisas, Ramiro! Trata-se de um fenômeno à brasileira. Faz-me lembrar do romance "Terra Sonâmbula", de Mia Couto, que li estes dias. Vivemos em um país em que não distinguimos o que é realidade, do que é fantasia. Experimentamos, presenciamos determinadas eventos e ficamos meio bobos, "abestalhados", tentando entender grau de inverossimilhança das coisas.

Adoro essas viagens. Estou disposto a realizar outras. Fico pensando na imensa Região Norte, tão grande, tão falta da ação eficaz do Estado. Fico pensando em seu desmazelo; na ingerência dos coronéis e dos grileiros das terras públicas. Somos uma grande Rússia em pleno século XXI, perdida em sua imensidão incontrolável.

Abraços!