"Caminhante, não existem caminhos. Os caminhos se fazem ao caminhar".
Rubem Alves
É curioso como o
tempo nos leva a aceitar determinadas coisas - e a rechaçar outras. Torná-las
menos palatáveis. Eventos que mereçam atenção, projeção de
perspectiva. Vivi por quase uma década metido com a religião. Converti-me à fé
protestante no final de 1999. Conheci pessoas. Fui a cultos. Direcionei minhas
preces ao céu para ter um melancólico silêncio. O cicio perdeu-se no espaço.
Caiu da altura para a qual eu o direcionei. E o meu grito é apenas um eco
represado dentro de mim.
Estudei para ser clérigo. Li
bastante. Debati com os meus iguais. Enchi-me de romantismo. Realizei prédicas.
Instei a tantos quantos achei pelo meu caminho. Quis revelar o fantástico mundo
ideal da religião. Descortinar a “salvação” – afinal, vivemos em um mundo de
perdidos (aqueles que ainda não aceitaram “a salvação”) e os eleitos remidos
(aqueles que foram visitados pela “salvação” e aceitaram-na). Tornei-me “chato”
para com alguns que não quiseram dar ouvidos àquilo que eu dizia. Tentava
empurrar o meu “entendimento” de garganta abaixo gerando, consequentemente,
sequelas indesejáveis nos outros. Quando estamos convictos de algo, não respeitamos
as singularidades. E por isso que Nietzsche disse certa vez que “existem
determinados pressupostos, certas credulidades, que são demoníacas”. Ou seja,
elas fazem mal, pois são mesquinhas, aviltadoras, inquisidoras, geradoras de
vítimas por não conseguirem lidar com a diferença.
Entendem que o mundo está
cindido em duas cores: o verde e o roxo, hipoteticamente. Colocam óculos que
determinam uma única visão; um víeis preconceituoso e reducionista. Então se o bem é representado pelo verde, todas
as demais cores são nocivas por não serem verdes. Se o roxo é a cor da virtude,
tudo aquilo que não tenha essa semelhança, torna-se sem graça e é tratado sem
deferência. É daí que brotam os conflitos religiosos.
O tempo em que vivi em meio ao
nicho religioso conheci pessoas de todos os calibres – mansos, eufóricos,
fingidos, solidários, gananciosos, arrogantes etc. Toda fauna humana
encontradiça em qualquer lugar do planeta.
Minhas leituras, minhas reflexões, fizeram-me refletir sobre
determinados fenômenos:
(1) A fé é um fenômeno humano:
inquestionavelmente a fé é um fenômeno pertencente apenas ao mundo humano. Se
os cavalos tivessem uma fé, os deuses dessa fé teriam uma fisionomia equina. O
ser humano criou a religião como uma tentativa de lidar com alguns medos,
receios e eventos trágicos que estão longe do seu controle. Fico a pensar no
homem da pré-história. Os fenômenos naturais eram eventos não controláveis. Não
se pode mandar no sol; na água da chuva; nas estações dos anos. Esse mesmo
homem quando sentia a necessidade de buscar aquilo que lhe era necessário para
a subsistência, dependia necessariamente dos “humores” da natureza. Por não
possuir a previsibilidade científica que atualmente nos é banal, esse mesmo
homem precisava invocar um poder capaz de subjugar as forças da natureza. Ao olhar para o céu numa noite escura, os
nossos antepassados deveriam morrer de pavor por perceber um mistério
intangível escondido atrás de cada sinal luminoso que brilhava no céu. Afinal,
se tudo está aqui e eu não tenho controle sobre isso, existe alguém que possui.
Como diz Marcelo Gleiser: “os céus eram vistos como manuscritos sagrados”. E
nos “manuscritos” estão escritos os mistérios recônditos de sinais milenares,
redigidos por forças inumanas que coordenam o destino de todos os seres.
Avançamos enquanto civilização humana. Mudamos a forma como lidamos com a
matéria. Subjugamos determinados fenômenos que no passado eram impensáveis. Mas
trouxemos conosco, apesar de tudo, determinadas compreensões que são atemporais.
E talvez nisso achemos a resposta na assertiva de Pascal: “Esses espaços
infinitos nos apavoram”. De certo. O medo da morte, das tragédias, das doenças,
da ausência de pessoas queridas, leva-nos a criar uma força que nos acalente,
que nos erga de nossas dores, de nossos terrores que nos atormentam. Nesse
sentido, a religião constrói um muro em torno de nós para nos trazer consolo.
Como diz Rubem Alves: “A religião é um dique construído contra o caos”. Se ela
fosse extirpada do planeta muitos indivíduos ficariam loucos, matariam a si
mesmos, por se negarem a aceitar tal fato, pois a religião é um fenômeno
unicamente dos seres humanos. Nossa existência Planeta Terra é algo imensamente
recente. Não vivemos nem uma décima parte daquilo que os dinossauros, por exemplo,
viveram no planeta. Mas temos a presunção de formular julgamentos e sistemas
que ultimam todas as coisas; que torna toda a realidade explicável pela teoria
da lacuna. Deus, por isso, torna-se a “causação” de todo evento; a resposta
justificável a todo movimento, força ou circunstância do cosmos. Enquanto
estivermos neste planeta, enquanto tivermos a consciência de que estamos
conscientes seremos animados por tal diligência.
(2) A espiritualidade está em todo canto:
Já que a religião é fenômeno intrínseco ao ser humano; adorno de sua
existência, pois desde os tempos ancestrais carregamos tão grande intuição, não
podemos negar a espiritualidade. Todavia, não podemos confundir espiritualidade
com o fenômeno religioso. A espiritualidade é aroma colhida pela alma,
resultante da estética da natureza. Existe, inegavelmente, uma estética na
natureza e uma capacidade humana para criar. Agimos assim por sermos seres
complexos e que trazemos à existência a beleza. Escrevemos poesias, livros;
pintamos belos quadros; compomos músicas encharcadas de delicadeza; construímos
determinados objetos que trazem satisfação aos olhos; ouvimos determinados sons
que nos emulam o interior; ou simplesmente enxergamos determinados espaços,
eventos ou situações produzidas que trazem efeitos incríveis sobre os nossos
sentidos. Assim, a espiritualidade
independe de forças religiosas. Ser espiritual é poder fruir um poema; uma voz
delicada que faz balançar o nosso coração; uma poesia que nos aquece o
interior; a visão de uma planície ou colina que faz erguer a admiração,
enchendo os nossos lábios de contentamento e um riso sempiterno. Sou daqueles
que acreditam que a espiritualidade está em toda parte e, pode até mesmo, estar
dentro do nicho religioso. Todavia, ela não está reservada apenas ao nicho; ela
não é fruto privativo de determinadas pessoas. Espiritualidade é sensibilidade.
É por isso que Alberto Caieiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, diz em
seu lindo e espiritual O guardador de
rebanhos:
(...) Não acredito em Deus porque nunca o vi
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta adentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e o sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol
(...) Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos...
E não nos dará mais nada, porque dar-nos mais
Seria tirar-nos mais.
(3) Está em determinado igreja (seita) não
me torna uma pessoa necessariamente melhor: Não sinto inveja ou qualquer
manifestação de pesar por não estar em uma comunidade, assim como aqueles que
estão presos e circunscritos em determinadas geografias religiosas. Em muitas
situações as patologias de determinado grupo, ou seja, a psicologia social do
grupo é instilada nos membros daquele grupo. Isso acontece com muitas
agremiações políticas e outros ajuntamentos humanos. Num dado sentido, está no
grupo legitima ou consolida as minhas crenças, pois ali estão pessoas que
coadunam com a minha visão de mundo. Assim, dependendo do modo como eu me
relaciono com os códigos expressos neste ajuntamento, a transposição desses
códigos para o mundo material, para a vida real, pode me tornar em um sujeito
limitado e encerrado em meus preconceitos.
(4) A psicologia da fé: a religião é um
fenômeno lingüístico, que por sua vez se torna em consciência para aquele que
crer. A linguagem é um instrumento de mediação entre o homem e o mundo. É por
meio dos signos criados pelo homem ao longo de sua história que esse mesmo homem
encontra sentido para as coisas que estão no mundo. Por não contemplarmos a
realidade face a face, precisamos de algo que sirva de veículo simbólico que
porte as intenções determinadas naquilo que criamos. Para isso utilizamos a
linguagem que, também, é um fenômeno complexo no mundo humano. E nesse sentido,
determinada linguagem nos conduz a determinadas interpretações. É justamente na
interpretação que apreendemos o símbolo que ressignifica o mundo. Ou seja, o
mundo e as minhas emoções se abraçam nessa interpretação. E a partir daí que
crio minhas preferências e determinado ponto de vista sobre determinado
fenômeno, pois interpreto o fenômeno e esse fenômeno ganha carne em minhas
emoções, mas isso não se dá diretamente. Acontece por meio de uma interpretação
que é inculcada em minha consciência, criando uma estruturação, uma segurança
em meu mundo interior. Falar é sempre revelar algo o qual eu já experimentei
pela interpretação daquilo que fui, senti, vivenciei. O mundo que defendo é
aquele que gira em torno dos meus valores e crenças internalizados. Eu
freqüento as coisas e as coisas me freqüentam. Reproduzo e sou reproduzido. Julio
Cabrera, filósofo da Universidade de Brasília, em seu livro A ética e suas negações diz que “Se os
deuses e demônios da nossa sobrevivência nos aparecem como independentes, é
porque nós mesmos lhes demos independência”. Ou seja, a linguagem quando
naturalizada tende a não ser questionada. É assim que se explica a psicologia
da fé. Chama-se a isso de conversão. Converter-se é mudar o referencial
interpretativo. É, por isso, que Paulo, o criador dos “esquemas dogmatizantes”,
um dos sujeitos mais habilidosos da história da Igreja, vai dizer que o sujeito
que se “converteu” se fez “nova criatura”; que tudo se fez novo e as coisas
velhas já passaram. Pois ele sabia que
essa conversão é um processo de reestruturação e reconstrução dos esquemas
interpretativos que sustentam determinados valores dos indivíduos. A conversão
gera crise por revelar ao sujeito um conjunto terrível de axiomas que levam,
quase sempre, o sujeito à crise. Após passar por uma catarse, o sujeito se
apresenta a esse novo mundo com uma nova linguagem; com uma nova forma de
portar-se; de se relacionar com o mundo, pois os seus referenciais mudaram
também. Na verdade, o que muda é a linguagem e seus valores implícitos que
acabam por se coadunarem com as emoções do converso. As mudanças ocorrem como
fenômeno, primeiramente, emocional e psicológico. Logo em seguida, essa mudança
ocorre no modo como articulamos a sociedade e a história. E por isso, que se
mata em nome da religião – e que se morre também -, pois se mudou o modo de
relação com o mundo. Explica-se ainda o porquê das orações. Quando o crédulo
ora, não significa que sua prece está sendo ouvida; representa meramente o fato
de que criamos a expectativa de que alguém está a nos ouvir. Essa consciência
gera um conforto, um consolo capaz de nos fazer serenar todos os desmazelos
existenciais. O que muda não é o mundo ou a história, mas a minha forma de me
relacionar com o mundo e com a história. O sujeito crer pelo fato de ser
apresentado a ele um panorama trágico e caótico. Após esse abalo, o sujeito
“aceita” os novos códigos, a nova cosmovisão, os novos valores que devem servir
de óculos para que ele veja o mundo. Paulo quando escreve aos romanos chama
esse evento de metanoia (no grego),
que significa “mudança de um determinado tipo de racionalidade ou forma de
pensar”. Assim, ao assumir o discurso da
fé, estou “agasalhando” em minha interioridade um conjunto de lentes
interpretativas que trabalharão em mim os seus efeitos, gerando um novo tipo de
consciência sobre os eventos da materialidade. É com esse aparato que passo a
julgar o que é bom e o que é mal; o que é pecado e o que é virtude.
(5) Antropologia da fé: para a fé (aqui
me refiro à cristã), o homem possui uma antropologia, que é a antropologia da
queda. O homem é um ser imperfeito desde o evento do jardim do éden. A maldade
que existe no homem não está condicionada a
priori por eventos históricos ou sociais. O mal no homem não é um fenômeno
que passa a morar nele em decorrência da materialidade como apregoa, por
exemplo, Karl Marx. O mal no homem está ligado a um problema ontológico. Em decorrência disso, só existe uma forma de
“reformar” o mundo, aceitando ao Cristo da fé, ao dogma da conversão, que é uma
docilização, um funcionalismo operante. Os homens conversos não pertencem a
esse mundo. São de outro plano. Como diz Agostinho em suas Confissões: “Criaste-nos para ti e nossa alma vive inquieta
enquanto não repousa em ti” (não sei se está correta a frase, já que estou
citando de cabeça). Em sentido kieekergaardiano, existir perante Deus é estar
destinado à culpa, pois a nossa ontologicidade é maculada. Deus é o sempre
santo; e, nós, os seres partidos e finitos. O único remédio é a conversão, ou
seja, a mudança matricial da forma de ler e enxergar o mundo. É na vida que se
decide a morte, pois aquilo que escolhemos ser, será – peremptoriamente.
Escolhi escrever essas palavras,
pelo fato de hoje ouvir que determinada pessoa mudou o seu comportamento para
comigo por eu ter feito algumas afirmações que feriu a sua fé. O sujeito
freqüenta uma determinada igreja evangélica – portanto, portadora de determinada
linguagem. Segundo ele, eu por ter estudado teologia e ter um conhecimento
relativo sobre os fenômenos ditos “sacros” , serei cobrado com contundência no
dia do juízo, corroborando com aquilo que está escrito em uma das cartas
bíblicas – se não me engano, a carta de Tiago. Eu poderia escrever – algo que
talvez eu faça qualquer dia desses – sobre o significado “sagrado” da bíblia,
que para mim é um livro humano que narra os eventos religiosos e a compreensão
de um povo sobre determinados pressupostos de sua experiência de fé.
Quero deixar bem claro que sou
uma pessoa religiosa – não no sentido ordinário o qual estamos acostumados.
Para mim a espiritualidade é um fenômeno capaz de me tornar livre, mais
compreensivo, compassivo, sendo entendedor que o outro para ser bom, não
precisa aceitar a minha fé. Crença é um fenômeno pessoal. Não devo cindir com
as pessoas somente pelo fato delas não crerem naquilo que creio. Não devo ser
tão presunçoso a esse ponto. Como diz Rubem Alves, “o Deus dos protestantes é o
Deus da causalidade inflexível”. E quando notamos tais coisas, apenas achega-se
a nós certeza de que somos seres curiosos. E como dizia Nietzsche mais ou menos
com essas palavras: “Criamos o in-criado e acabamos sendo dominados pela nossa
própria criação”.
3 comentários:
Caro Carlinus,
gostei da longa reflexão… Vou levá-la em meu pensamento. Parece-me que você está a se aproximar de uma grande maturidade. Isso não quer dizer que não encontrará dissabores em sua existência; sabe-se pela vida que é justamente o contrário, mas a sua preparação ao enfretamento dos inevitáveis obstáculos pareceu-me ser sólida e, principalmente, serena.
É bom e é um bem saber de seres religiosos que estão a se preparar à diversidade das culturas… Creio que este seja o único caminho possível às futuras gerações desse planeta.
Desejo que Jesus - na verdade aquele Menino que brinca, com Caeiro, tão travesso, tão brejeiro - esteja ao seu lado… Assim talvez um dia, tal qual profetiza o poema, Ele possa levá-lo, em seu pequeno colo…, para algum lugar bem bonito…
Obrigado, Ramiro! Sempre as belas palavras a serem proferidas por ti. Na verdade, o texto é resultado de uma indignação, de uma onda vaga de ressaibo mordente, mas agora estou bem. Até hoje não resolvi esse problema.
Grande abraço!
Carlinus… Ao possível
apaziguamento da sua
indignação…
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MAIÊUTICA DOS FAVOS
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O que fazer com os bens adquiridos
a não ser doá-los aos mais queridos?
Não é assim… se não se teme o fim?
*
O que fazer com o capital conquistado
a não ser consagrá-lo à humanidade?
Não é assim… o existir além de si?
*
O que fazer com toda a ciência,
a não ser ensiná-la à inocência?
*
O que fazer com a consciência obtida
a não ser favorecer os favos da vida?
*
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*
MOTO-CONTÍNUO
*
*
O amor
é uma luz
a costurar
o outrora
ao agora
de tal maneira
que de repente
nasce a aurora,
que será um novo
outrora, que será
um outro agora,
que será outra física,
uma outra metafísica,
uma outra mecânica,
outra termodinâmica.
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