Em que medida ele fora então bom menino, inocente, de coração singelo, pobre nas suas modestas tristezas, alegrias e devaneios! O seu amor sem objeto, incorpóreo, de então tinha sido um sonho ou, melhor, a recordação de um sonho maravilhoso. Mas agora havia Kátia, havia uma alma que encarnara em si o mundo e que o dominava por inteiro. p. 46
A literatura é mundo de possibilidades infinitas; de incontáveis belezas; de polifonias; de feições e linguagens variadas; de poesia em estado puro; de insinuações implícitas; de depuração. É por esse motivo que lemos literatura; que não conseguimos nos afastar dela. A boa literatura é remissora, humanizadora. Nela encontramos a exatificação daquilo que poderia ser o mundo. Aquilo que os homens não conseguem desenhar, materializar, a literatura possui o potencial de representar, de simular. As tintas da literatura são mais densas do que as cores do mundo real. Ela permite a transfiguração do mundo.
Pois essas impressões se tornaram mais vivas após terminar a leitura do livro O amor de Mítia, de Ivan Búnin. Certamente, uma das prosas mais belas e elegantes que já tive a oportunidade de ler. Um estilo que beira a uma epifania poética. Boris Schnaiderman, o famoso tradutor de obras do russo afirma: "Enfim, bem poucas vezes, em minha tão extensa caminhada como tradutor, me defrontei com um texto vigoroso como o desta novela". Não é para menos.
A vida de Búnin é dividida em dois momentos: a vida na Rússia pré-revolucionária e a vida pós-revolucionária, fora da Rússia. Nascido em 1870, o ganhador do Prêmio Nobel de 1933, sempre buscou forjar um estilo que o colocasse entre a prosa e a poesia. Tornou-se amigo dos mestres Tchekov e Tóltoi. Aquele viu nele um futuro brilhante. Este o estimava com grande carinho. Búnin se utilizou dessas amizades profícuas para aprender. A maturidade foi sendo desvelada de forma gradual. Com a eclosão da Revolução de 1917, Búnin não quis continuar na Rússia. Resolveu deixar o país. Desconfiava dos destinos transigidos. Não esperou para ver. Fugiu com a mulher. Radicou-se na França. E foi lá, como emigrado, que os seus belos textos foram surgindo um a um.
O amor de Mítia, uma novela curta, foi escrita no auto-exílio. O Estado Soviético repeliu firmemente a sua fuga. Nos anos mais duros de repressão, quem mencionasse ou citasse o escritor, poderia amargar a prisão. Ficou como exemplo negativo. Todavia, apesar da distância, Búnin não abandonou espiritualmente a sua terra. Sua paixão pela literatura do seu país, principalmente por Tólstoi, que era alçado ao nível supremo de beleza literária; a relação panteísta que nutria com as belezas da cultura e da natureza, pode ser observado em seu texto. Fazendo uma pequena digressão: Búnin não gostava de Dostoiévski. Achava-o espalhafatoso em excesso.
O amor de Mítia é uma história simples. O mote é o amor, o ciúme e o sofrimento, um tema bastante comum na literatura. Após Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, este tema assumiu paroxismos de grande dramaticidade. Goethe havia transido a existência de Werther, impingido dores contumazes, revolvido sua alma, revelado o seu espírito, suas aflições, seu martírio. Há nesse sentido um paralelismo entre Mítia e Werther. A diferença ao meu modo de ver fica por conta do estilo de Búnin. Trata-se de obra de rigor; de um controle absurdo da narrativa; e, como diz Schnaiderman, de grande "vigor". Havia sentido isso certa vez ao ler Quincas Borba, de Machado de Assis.
Ivan Búnin (1870-1953) |
Mítia é um apaixonado que se alimenta apenas de um pensamento: a sua amada Kátia. Foge para tentar separar-se de sua presença. Mas a sua ausência é presença. Ele é preenchido justamente por aquilo que lhe falta. Busca a solidão do campo. Foge da Moscou barulhenta, agitada e se refugia em meio à natureza. E é nesse ponto que penso que esteja o ponto alto do livro. Búnin consegue de forma singela, descrever com uma beleza única, a vida pastoril. A natureza com sua presença luxuriosa, a exalar vida; e os seus rigores imparciais. A natureza se assume como a sua amada Kátia: bela, lúbrica, fértil, a espargir fragrâncias virginais, mas, ao mesmo tempo, sendo grave, imparcial, seguindo o seu curso implacável, pouco obsequiosa para com Mítia.
Como mencionei acima, as descrições são de uma beleza assustadora, de um realismo colorido que sinestesicamente coloca-nos diante do cenário. Apenas alguns exemplos:
Capítulo IX
Vieram depois as neblinas tépidas, as chuvas, a neve foi derretida e devorada em poucos dias, o gelo do rio se pôs em movimento e a terra começou a negrejar alegre, renovada, a desnudar-se no jardim e no quintal...
Capítulo XIV
A floração das pereiras era particularmente densa e vigorosa, e a mistura dessa branquidão e do azul vivo do céu dava um reflexo violáceo. [...] Sentia-se no ar tépido o seu cheiro suave, adocicado, juntamente com o cheiro do estrume aquecido, em fermentação no curral. p. 59
Capítulo XXVIII
Fazia frio, havia umidade penetrante, as nuvens escureciam o dia; sobre aquele fundo negro, o verde compacto do jardim molhado destacava-se com particular densidade, frescor e nitidez. p. 113
Fica implícito no texto de Búnin uma inquietação com relação aos sentimentos fortes e que estabelecem sentido para a existência. Amor e morte são forças antagônicas, mas complementares. Elas se jungem em determinados momentos; sedimentam-se; tornam-se numa massa informe e se instalam como forças gravitacionais no coração do ser humano. Amamos, mas os ciclos e o devir universais seguem indiferentes, apesar de sermos parte deles.
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