sexta-feira, maio 06, 2016

Algumas considerações sobre "O amor de Mítia", de Ivan Búnin

Em que medida ele fora então bom menino, inocente, de coração singelo, pobre nas suas modestas tristezas, alegrias e devaneios! O seu amor sem objeto, incorpóreo, de então tinha sido um sonho ou, melhor, a recordação de um sonho maravilhoso. Mas agora havia Kátia, havia uma alma que encarnara em si o mundo e que o dominava por inteiro. p. 46

A literatura é mundo de possibilidades infinitas; de incontáveis  belezas; de polifonias; de feições e linguagens variadas; de poesia em estado puro; de insinuações implícitas; de depuração. É por esse motivo que lemos literatura; que não conseguimos nos afastar dela. A boa literatura é remissora, humanizadora. Nela encontramos a exatificação daquilo que poderia ser o mundo. Aquilo que os homens não conseguem desenhar, materializar, a literatura possui o potencial de representar, de simular. As tintas da literatura são mais densas do que as cores do mundo real. Ela permite a transfiguração do mundo. 

Pois essas impressões se tornaram mais vivas após terminar a leitura do livro O amor de Mítia, de Ivan Búnin. Certamente, uma das prosas mais belas e elegantes que já tive a oportunidade de ler. Um estilo que beira a uma epifania poética. Boris Schnaiderman, o famoso tradutor de obras do russo afirma: "Enfim, bem poucas vezes, em minha tão extensa caminhada como tradutor, me defrontei com um texto vigoroso como o desta novela". Não é para menos.

A vida de Búnin é dividida em dois momentos: a vida na Rússia pré-revolucionária e a vida pós-revolucionária, fora da Rússia. Nascido em 1870, o ganhador do Prêmio Nobel de 1933, sempre buscou forjar um estilo que o colocasse entre a prosa e a poesia. Tornou-se amigo dos mestres Tchekov e Tóltoi. Aquele viu nele um futuro brilhante. Este o estimava com grande carinho. Búnin se utilizou dessas amizades profícuas para aprender. A maturidade foi sendo desvelada de forma gradual. Com a eclosão da Revolução de 1917, Búnin não quis continuar na Rússia. Resolveu deixar o país. Desconfiava dos destinos transigidos. Não esperou para ver. Fugiu com a mulher. Radicou-se na França. E foi lá, como emigrado, que os seus belos textos foram surgindo um a um. 

O amor de Mítia, uma novela curta, foi escrita no auto-exílio. O Estado Soviético repeliu firmemente a sua fuga. Nos anos mais duros de repressão, quem mencionasse ou citasse o escritor, poderia amargar a prisão. Ficou como exemplo negativo. Todavia, apesar da distância, Búnin não abandonou espiritualmente a sua terra. Sua paixão pela literatura do seu país, principalmente por Tólstoi, que era alçado ao nível supremo de beleza literária; a relação panteísta que nutria com as belezas da cultura e da natureza, pode ser observado em seu texto. Fazendo uma pequena digressão: Búnin não gostava de Dostoiévski. Achava-o espalhafatoso em excesso.

O amor de Mítia é uma história simples. O mote é o amor, o ciúme e o sofrimento, um tema bastante comum na literatura. Após Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, este tema assumiu paroxismos de grande dramaticidade. Goethe havia transido a existência de Werther, impingido dores contumazes, revolvido sua alma, revelado o seu espírito, suas aflições, seu martírio. Há nesse sentido um paralelismo entre Mítia e Werther. A diferença ao meu modo de ver fica por conta do estilo de Búnin. Trata-se de obra de rigor; de um controle absurdo da narrativa; e, como diz Schnaiderman, de grande "vigor". Havia sentido isso certa vez ao ler Quincas Borba, de Machado de Assis.

Ivan Búnin (1870-1953)
Mítia é um apaixonado que se alimenta apenas de um pensamento: a sua amada Kátia. Foge para tentar separar-se de sua presença. Mas a sua ausência é presença. Ele é preenchido justamente por aquilo que lhe falta. Busca a solidão do campo. Foge da Moscou barulhenta, agitada e se refugia em meio à natureza. E é nesse ponto que penso que esteja o ponto alto do livro. Búnin consegue de forma singela, descrever com uma beleza única, a vida pastoril. A natureza com sua presença luxuriosa, a exalar vida; e os seus rigores imparciais. A natureza se assume como a sua amada Kátia: bela, lúbrica, fértil, a espargir fragrâncias virginais, mas, ao mesmo tempo, sendo grave, imparcial, seguindo o seu curso implacável, pouco obsequiosa para com Mítia.

Como mencionei acima, as descrições são de uma beleza assustadora, de um realismo colorido que sinestesicamente coloca-nos diante do cenário. Apenas alguns exemplos: 

Capítulo IX

Vieram depois as neblinas tépidas, as chuvas, a neve foi derretida e devorada em poucos dias, o gelo do rio se pôs em movimento e a terra começou a negrejar alegre, renovada, a desnudar-se no jardim e no quintal...

Capítulo XIV

A floração das pereiras era particularmente densa e vigorosa, e a mistura dessa branquidão e do azul vivo do céu dava um reflexo violáceo. [...] Sentia-se no ar tépido o seu cheiro suave, adocicado, juntamente com o cheiro do estrume aquecido, em fermentação no curral. p. 59

Capítulo XXVIII

Fazia frio, havia umidade penetrante, as nuvens escureciam o dia; sobre aquele fundo negro, o verde compacto do jardim molhado destacava-se com particular densidade, frescor e nitidez. p. 113

Fica implícito no texto de Búnin uma inquietação com relação aos sentimentos fortes e que estabelecem sentido para a existência. Amor e morte são forças antagônicas, mas complementares. Elas se jungem em determinados momentos; sedimentam-se; tornam-se numa massa informe e se instalam como forças gravitacionais no coração do ser humano. Amamos, mas os ciclos e o devir universais seguem  indiferentes, apesar de sermos parte deles. 


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