sábado, agosto 06, 2016

Pokémon Go e a falsificação do real

Não quero acreditar que se trate apenas de envelhecimento e casmurrice exacerbada de minha parte; ou ainda de uma personalidade assentada no mau-humor, que se indispõe contra todas as novidades, alegando uma suposta conspiração de forças secretas, dispostas a dominarem o mundo. Quero crer que não se trata disso. Peremptoriamente, não. O fato é que não consigo tirar da cabeça a indisposição contra a nova atração da indústria cultural do entretimento: o Pokemón Go. O jogo inventado pela Nintendo tem capturado a atenção de indivíduos de todas as faixas etárias e criado, mais uma vez,  uma febre como o foram a Macarena ou o Lepo Lepo. É uma espécie de "A coisa", aquele filme da década de oitenta, que mostrava um iogurte de marshmallow que se transformava em um sucesso comercial, uma febre coletiva, mas, que no fundo, era uma força de outro mundo que dominaria o planeta.

Pelo que li, o jogo é baseado em dados virtuais de geolocalização. O jogador precisa instalar o jogo no celular e sair à cata de "monstrinhos" que vão surgindo como desafios a serem capturados. Assim, o sujeito recebe os dados para localização do ente virtual, observa as informações geográficas que são disparadas por coordenadas e, com a tecnologia do celular - câmera, GPS etc - vai, meio que bestializado, à procura da nova aventura. 

Quando vejo algo assim, vem-me à mente aquela passagem da Odisseia em que Ulisses precisa enfrentar as sereias. Desejando ouvir as criaturas mágicas sem enlouquecer, Ulisses pede para ser amarrado ao mastro do navio e solicita aos seus marinheiros que tapem os ouvidos com cera para não serem atingidos pelo feitiço, ou seja, pelo canto enganador. As sereias eram entidades que se travestiam de mulheres belíssimas, encantadoras, que se colocavam em determinados locais. Quando avistavam viajantes desatentos, iniciavam um canto maravilhoso que acabava por enfeitiçar aqueles que as escutavam. Uma vez capturado pelo força inebriadora do canto, o sujeito tornava-se uma presa fácil e era devorado pelas sereias. No fundo, aquelas entidades eram monstros terríveis. 

Essa história ilustra como em uma sociedade capitalista é preciso manter-se atento "ao canto das sereias" da idiotização. O quanto é necessário refletir a nossa relação com o mundo real. Jogos como Pokemon Go expõem o quanto o capitalismo precisa criar "fugas" do mundo material. O quanto é preciso confundir materialidade com virtualidade, fazendo com que esta última, em sua dimensão enfeitiçadora, torne-se mais significativa que o mundo desigual em que vivemos. Ao se confundir, por meio de uma indução os elementos do real e os elementos da aparência das coisas, cria-se uma falsificação do mundo real e das coisas reais. Assim, a falsificação é poderosa, pois desvia a atenção do sujeito para aquilo que não é, fazendo com que o real se esconda ou não seja desejado. O "espectro do virtual" torna-se mais interessante. Essa "confusão" é induzida e não deve ser entendida como gratuita. O que a indústria cultural do capital mais deseja é manter os indivíduos expostos ao canto enfeitiçador do entretenimento fácil e falto do uso da razão; da suspensão do juízo crítico.

Adorno e Horkheimer, no clássico A dialética do esclarecimento, afirmam que uma das estratégias do capital é a produção de uma indústria cultural. Neste enquadramento, "o indivíduo é ilusório não apenas por causa da padronização do modo de produção. Ele só é tolerado na medida em que sua identidade incondicional com o universal está fora de questão" (p.128). Ou seja, a consciência de si é um dado inexistente. O sujeito desvia o olhar de si para elementos externos à sua condição. Padroniza-se a realidade, convence-se o sujeito por meio da celebração dos espetáculos e das mercadorias, que existe uma naturalização do mundo tal qual ele é. Vive-se, assim, uma ditadura "do falseamento" criada pela imanência do estilo de vida criada pelo capital.

No filme O show de Truman (1998), de Peter Weir, a personagem Truman encenada por Jim Carrey, vive em um mundo de faz de conta. Ele não sabia quem era. Suas ações cotidianas, seus sentimentos, suas relações sociais estavam confinadas a um esquematismo de uma equipe de televisão que o mantinha preso dentro de um estúdio, vivendo uma espécie de reality show para divertir os telespectadores. Desde criança, Truman havia sido confinado naquele cenário. Ele era apenas um joguete, uma objeto manipulável, sem consciência de si, da sua condição, de sua origem, de sua história pessoal. Com o tempo a personagem passa a desconfiar de que algo "estranho" acontecia, que os eventos sempre se repetiam. Mas, todas as vezes que buscava uma pista que explicasse o seu drama pessoal, os questionamentos em torno de sua história, os organizadores do programa (a força externa e coercitiva), impedia a sua busca.

Jogos como Pokemon Go são formas dissimuladas de criar zumbis. Ele preenche o vazio criado pelo capital - o vazio que é o grande ethos de nossa época. Consome-se tudo de forma suína. Não distingue-se o produto, o artefato, o objeto, tudo vira matéria para distração. Engole-se qualquer coisa. Tudo é novidade. E o novo em sua rutilância tem a capacidade de seduzir. Poucos são os viajores do mar da história que prestam atenção "à música que escutam". Poucos são aqueles que distinguem a melodia enfeitiçadora que produz estragos. Poucos são aqueles que conseguem perceber o véu de falsificação produzido pela indústria que banaliza sujeitos e os transformam em títeres dóceis e zumbificados. 

É preciso atentar para a advertência de Ulisses. 

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