segunda-feira, setembro 03, 2018

O incêndio como metáfora

Ontem à noite, eu estava em uma lanchonete com alguns amigos, quando um outro amigo, morador de Blumenau, Santa Catarina, informou-me pelo celular que o Museu Nacional estava pegando fogo. A princípio, julguei a informação meio extemporânea. Inusitada. Inesperada. Fiquei sem saber sobre qual museu ele se referia. O Museu Nacional da República (Brasília) ou o Museu Nacional, aquele que abrigou a família real, no Rio de Janeiro? 

Quando voltei para casa, atentei para a tragédia material e simbólica que estava acontecendo. Afinal, não era somente um museu que estava queimando, tratava-se da dignidade de uma sociedade, da promessa de um país que falhou, que está aniquilado, manietado por lideranças mesquinhas, que não desejam um Brasil grande. 

Há muito o museu amargava uma situação de penúria. Orçamento mirrado. Funcionários que não recebiam. O cupim que comia o madeiramento. Pedaços do teto que caíam. Quantos monumentos não passam pelo mesmo problema no Brasil? Há dois anos, por exemplo, visitei algumas igrejas históricas de Olinda, Pernambuco, e deixei o lugar bastante triste. Uma igreja - não me recordo do nome - do século XVII, belíssima, imponente, em degradação silenciosa. As pinturas sendo consumidas pelos insetos. O buraco que aumentava dia a dia, prestes a comprometer certa porção do teto e desabar na cabeça dos visitantes. O guia me falou meio cético e triste do completo abandono das igrejas da cidade. Certamente, assim acontece em vários estados brasileiros - Minas Gerais, Sergipe, Paraíba, São Paulo, Bahia etc - tanto os monumentos que estão sob a supervisão federal, estadual ou municipal. 

O episódio com o Museu Nacional é grávido de metáforas. Havia no local mais de vinte milhões de peças de valores incalculáveis para o Brasil e para a humanidade. O crânio de Luzia, a mulher mais antiga já encontrada no Brasil (aproximadamente doze mil anos) - e a mais antiga das Américas -, sobreviveu aos elementos do tempo, mas não sobreviveu à irresponsabilidade das nossas elites políticas. Artefatos indígenas. Esculturas. Todavia, esse tipo de riqueza é vilipendiada no Brasil, um país tacanho, pequeno, com líderes que são usurpadores, que não respeitam a vontade do povo, que engolem as riquezas produzidas pelo povo; que jogaram a soberania do Brasil na latrina.

Um governo irresponsável. Preocupado apenas com os seres sem rostos do mercado financeiro, congelou os gastos com saúde, segurança, educação (e cultura) por vinte anos. Que tem asfixiado a pesquisa no Brasil. Que tem suprimido as verbas do ensino superior. Que concede um aumento de mais de 16 por cento para os juízes do STF, gerando um afeito cascata comprometedor. Estima-se que o gasto a partir de 2019 chegue a 8 bilhões de reais por ano. O que seria possível fazer com 8 bilhões de reais em matéria de cultura para este país? Certamente, evitaria que tragédias como estas não acontecessem. Atualmente, o museu precisava de pouco mais de 500 mil reais para funcionar mensalmente. É o quê um único juiz do STF, ganha em um ano - salários e garantias. Os onze ministros do STF valem um Museu Nacional. Poderíamos fazer uma campanha: troque o STF por um museu. Certamente, o problema não é só de um governo.

Segundo foi veiculado pela grande mídia, o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, construído por Dom João VI, que deveria ser um orgulho para todos os brasileiros (muitos nem sabiam de sua existência), possuía o quinto maior acervo de peças do mundo - múmias egípcias, esqueletos de dinossauros, uma das versões mais antigas da Bíblia etc. Eu imagino episódios medonhos como estes acontecendo ao Museu de História Natural de Londres, ou ao Museu de História Natural de Nova York, ou ao Louvre ou ainda ao Museu Nacional do Prado. Não. Isso não aconteceria a estes espaços tidos como sagrados pelos seus países. Eles dimensionaram a importância cultural e social. Sabem da importância histórica, científica; como símbolo da identidade nacional e econômica. Por aqui, as coisas são sempre mesquinhas, pequenas, contrárias, paradoxais. 

Elas revelam vontades embriagadas e rarefeitas. Revelam nossa tristeza sempre presente. As cores apáticas de nossa inteligência. Nosso mofinismo crônico. Nosso entusiasmo carunchado. Nossa incapacidade de entender o passado. Parece que sempre estamos dentro de uma estrutura atemporal que nos impede de entender o que somos. Sustentamos sempre o improviso. O tragicômico sempre nos alcança. Desenha nossos caminhos; empurra-nos para buracos patéticos; para vaguidões sem paredes. O orgulho é sempre uma miragem na nossa terra. Pisoteamos com enorme desengano a nossa esperança. As cenas se sucedem numa emulação cinzentamente burlescas como, por exemplo, o fato de não haver água nos hidrantes do museu para que a debelação do fogo fosse realizada mais rapidamente pelos bombeiros.

Olhando para as fotografias tiradas por Marcelo Sayão para o jornal El País, constatei o quanto a tragédia não nos ensina absolutamente nada. Em quinhentos anos de história, ainda engatinhamos, ensaiamos pateticamente as garatujas de um pacto social que nos transformará em país sério e comprometido com o futuro. Mas como fazer isso, se não conseguimos respeitar a nossa memória? Como fazer isso, se a cultura, o conhecimento, a pesquisa, a educação, no geral, são ruídos pelos cupins, em sentido material e simbólico? Quem dera o fogo fosse purificador. Por aqui ele não é! No Brasil, a luz no final do túnel, não é uma saída; trata-se de uma pesada máquina sem freios, vindo para nos dilacerar. 

P.S. 1.  Para muitos, o importante é que Lula está preso e Bolsonaro é nossa esperança transformadora. Que país! Por isso, os museus queimam por aqui. 

P. S. 2. Vale lembrar que não entendemos muita coisa sobre arte e ciência. O ano passado (há um ano), o moralismo patético e enviesado de certos grupos tidos por liberais (sic), fez um alarde descomedido na porta de um museu em Porta Alegre. Temos muita intimidade com a arte e com a coisas sensíveis neste país. 

P.S. 3 - Segundo o jornal O Globo, mês passado, os censores atacaram novamente

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