segunda-feira, setembro 24, 2018

Paulo Honório, o grande personagem de São Bernardo

"O que estou é velho. Cinquenta anos pelo S. Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada."

Após a terceira leitura de São Bernardo, de Graciliano Ramos, restou a convicção de que ele é o grande romance do inominável escritor alagoano. Li-o observando minudências. Escovando a atenção. Esmerilhando os sentidos para que pudesse beber cada frase. Cada insinuação velada. A história de Paulo Honório além de uma grande estudo psicológico é uma verdadeiro palco de como é constituído o cenário social e político da década de trinta. 

São Bernardo foi a segunda obra escrita pelo velho Graça, um escritor circunspecto, atento à palavra; carpinteiro meticuloso. Alguém que sabia o verdadeiro peso da palavras. Que não gastava tempo ensaboando os adjetivos. Ele simplesmente dizia o que queria dizer sem, que para isso, fizesse rodeios, se metesse em empolações balofas. Não era sua intenção deixar o texto literário repleto de tecidos gordos e desnecessários. Um primeiro aspecto que nos chama a atenção é a "magreza" das expressões. Paulo Honório o narrador é um sujeito rústico, dono de uma "bruteza" agreste. Ele é a voz e o estômago do patriarcado. 

No início da obra é dito que ele desejava contar a sua história. Mas após ter contratado alguém que o fizesse, percebeu que a coisa estava "pernóstica", "estava safada". Refugou o intento. E decidiu levar à frente o empreendimento. Sua forma de narrar é honesta. As palavras mais duras e sensíveis do livro são dirigidas a ele mesmo. 

Após a leitura, ficaram-me três perspectivas em leve gravitação em minha cabeça:

(1)  A econômica - Paulo Honório é um sujeito determinado. Possuía uma fome grandiosa pelo trabalho. Sabia tirar proveito das situações. Fez de tudo um pouco - foi vendedor (mascate), trabalhou com a enxada; empreendedor. Em tudo o que fez, havia um determinismo para algo maior. Viu na figura de Padilha, dono da fazenda São Bernardo, a possibilidade de triunfo. Padilha era um pândego. Representava a antítese de Paulo Honório. Faltava-lhe imaginação. A princípio, pediu um empréstimo ao futuro dono de São Bernardo. Consegue. Todavia, aquilo era uma estratégia. Acabou se enredando e teve que entregar a fazenda a um preço irrisório. Começa, a partir dali, a grande saga de Paulo Honório. Ele faz investimentos vultosos. Investe na agropecuária. Na década de trinta, o Brasil enfrentava uma crise econômica seríssima, em decorrência do processo monocultor a que se dispusera o país. O café fora o carro-chefe da economia brasileira. Com a crise de 1929, percebeu-se a necessidade de industrialização do país. Paulo Honório possui essa sensibilidade.

Ele varia as práticas. Compra máquinas. Investe em árvores pomíferas. Constrói açudes. Domestica o curso da águas. A natureza passa a ser usada para produzir riquezas. Paulo Honório é, em suma, uma representação do capitalismo. Ele avança de maneira inconteste. Não há limites para os seus desejos grandiosos. Não há sensibilidade. O lucro, a vantagem e o poder são sempre os seus objetivos. Avança com a propriedade e vai conquistando as propriedades vizinhas. Aqueles que oferecem resistência são derrubados pela pistolagem. Ele torna São Bernardo em um grande empreendimento. Uma representação fiel da vontade fáustica que há na sua personalidade.

(2)  A política - do ponto de vista político, Paulo Honório é um sujeito esperto e bem articulado. Há ao seu lado, a religião, o direito e a esfera jornalística. Ele sabe o quanto essas três dimensões são importantes para influenciar politicamente o cenário; para "manipular" a materialidade a seu favor. A construção da escola não é uma estratégia com finalidade sociais. O interesse é político. Pouco lhe interessa saber se as pessoas sabem escrever ou não. Para ele, pessoas sabidas eram pouco habilidosas para a ação de plantar. Elas atrapalhariam a condução dos trabalhos em São Bernardo. A construção da paróquia não acontece por piedosa devoção. A vida dos homens é organizada em torno de determinadas ações políticas. São justamente essas ações que potencializam a manipulação do poder. Saber utilizar a política é atrair o poder para si. Paulo Honório tem consciência de determinado empreendimento. Ao estabelecer relações com as autoridades, Paulo Honório procura fazer com que a esfera de poder lhe seja permeável.

(3) A existencial - do ponto de vista existencial, a personagem é carregado pelos mais duros e sombrios desejos. Sua disposição mental é sempre a da conquista. Quando procura uma mulher para si, não o faz motivado pelas implicações que são no matrimônio. Madalena é apenas mais uma "coisa" a ser conquistada. Como deixa transparecer em suas reflexões, Paulo passara a vida em marcha. Esta marcha enrijeceu sua capacidade para as mesuras, para os afetos. Como se pode perceber por meio de suas reflexões, Paulo consegue perceber o tamanho de sua solidão, de seu egoísmo. O último capítulo do livro - uma das mais belas autorreflexões já feitas por uma personagem - nota-se o quanto a vida colocou nele "um gosto agreste na boca". o fluxo existencial de Paulo Honório é como o de uma locomotiva sem freios. Ninguém parece detê-lo. Sua vontade é de ferro.

Se Paulo é a força indomável, Madalena é a bondade e o idealismo. Sua sensibilidade é um ponto contrastante na obra. Vale mencionar ainda que Madalena não se enquadra no perfil das mulheres da década de 30 do século passado, ainda mais em se tratando do Nordeste. Madalena é uma mulher com ideias e opiniões próprias. É comunista. Tem senso político. Debate com os homens da fazenda. É o lado humano das relações da Fazenda São Bernardo. Por outro lado, Paulo Honório atua sob o signo da violência, desde as páginas iniciais quando agride certo jornalista por ter redigido matéria contrária ao futuro dono de São Bernardo. A violência é, de certo modo, constitutiva das sociedades. E aqui deve se entender que não se trata apenas de violência física. O Estado opera sob o signo de certa violência para que organize a vida social. Cabe a ele dizer o direito, que pode ser dividido em natural e positivo. Para Paulo Honório, a sua esfera é a do direito natural. Para ele, existe certa ordem que deve ser obedecida. Sua vida é a da conquista por meio de gestos violentos - seja objetos, animais, terras ou seres humanos. Ele toma parte das terras do Mendonça; suprime a propriedade do Padilha. Madalena é, de certa maneira, apenas mais um "bem" a ser conquistado. O que desarticula o seu juízo é a vontade, o senso de liberdade que mora em Madalena. Após esse passo, um ciúme doentio se apropria dele. 

Pretendo realizar outras leituras. Por enquanto, ficam essas percepções.

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