terça-feira, novembro 13, 2018

A Reforma, o evangelicalismo brasileiro e as eleições

Os protestantes constituem uma massa complexa. É um grande tecido com cores variadas. No dia 31 de outubro passado, os países com tradição protestante, comemoraram 501 anos da Reforma. O dia da Reforma é comemorado neste dia pelo fato de o monge agostiniano Martinho Lutero ter pregado as suas 95 teses na Catedral de Wintenberg, na Alemanha. Começava a partir dali um outro movimento dentro da cristandade.

A Reforma foi um movimento antagônico à Igreja Católica e Apostólica Romana. Durante mais de mil anos, a Igreja Católica exerceu a primazia sobre a cristandade europeia. Havia acontecido o Cisma do Oriente, em 1054. Naquele episódio a Igreja Católica passou pela sua primeira grande divisão, dando origem à Igreja Ortodoxa ou Igreja do Oriente. 

O fato ocorrido em 1517, seguia a tendência modernizadora que ocorria na Europa. Havia um questionamento ao poder quase que absoluto da Igreja Romana. A vida desregrada de suas principais figuras gerava críticas. O aspecto soberbo do clero. A grandiloquência da vida e os casos de corrupção geravam escândalos. O Protestantismo era manifestação religiosa certa para o espírito da época. Experimentavam-se os primeiros ventos de um novo modo de produção - o capitalismo. Havia uma nova razão científica, o racionalismo. Aos poucos, a estrutura pesada da Igreja Romana foi sendo vista como um entrave às mudanças. 

A fé Reformada se assentava em cinco pontos, conhecido também como os Cinco Solas - sola fide (somente a fé); sola scriptura (somente a escritura); solus Christus (somente Cristo); sola gratia (somente a graça); e soli Deo gloria (glória somente a Deus). Cada "sola" abrigava um ensinamento teológico profundo, que destoava dos ensinamentos do catolicismo. Por exemplo, no primeiro apresentado da lista ("sola fide"), trazia a doutrina da salvação pela fé, extraída de Romanos 1.17. Foi a leitura desse versículo, que deu a Lutero a certeza de que não era necessário nenhum sacrifício a mais para se alcançar a salvação. Ter fé na obra de Cristo era suficiente para ter uma vida cristã saudável. A justificação foi realizada, pois o amor de Deus e a obra (unicamente de Deus), por intermédio da morte de Cristo, é o suficiente para a vida plena. Não há necessidades de intercessão de santos, da obra espiritual da Igreja ou qualquer outro sacrifício. 

No "sola scriptura", havia uma importância profunda pelo fato de a Bíblia, no catolicismo, ser lida apenas pelos padres e pelas autoridades da Igreja. A partir da Reforma, os cristãos passaram a examinar as Escrituras (o Velho e o Novo Testamentos). Durante o período hegemônico do catolicismo, a Bíblia ficava escondida nos mosteiros. A interpretação era filtrada. A Reforma colocou a Bíblia nas mãos do povo. A invenção de Gutenberg também auxiliou esse fato, pois os livros passaram a ser produzidos em escala.  O primeiro livro por Gutenberg foi justamente as Escrituras. Para os protestantes, ela era a única palavra inspirada por Deus. Ela mesma era a sua intérprete. Ela dava testemunho de si, não havendo necessidade de entremeios. 

Para aqueles sujeitos que foram responsáveis pela Reforma, havia uma preocupação profunda com a defesa do Evangelho. Levava-se em conta aquela fala de Paulo: "Ai de mim se não pregar o Evangelho". (1 Co 9.16). 

Curiosamente, após quinhentos anos, as igrejas que surgiram da Reforma perderam a relevância. Na Europa, o protestantismo não passa pelos seus melhores dias. Nos países em desenvolvimento, entre eles o Brasil, a fé de origem protestante enfrenta um fenômeno complexo: 

(1) Possui quantidade, mas não possui a qualidade desejada pelos reformadores - os últimos censos realizados no Brasil, mostram claramente o crescimento vertiginoso do número dos ditos protestantes. Todavia, a fé protestante experimentada por aqui vive uma espécie de esquizofrenia.  O movimento protestante teve a sua origem na Europa. Foi para os Estados Unidos e acabou ganhando o mundo. Ou seja, a fé protestante vivida por aqui está numa terceira fase (sem mencionar a divisões já surgidas dentro do protestantismo brasileiro). Junto com o protestantismo estadunidense veio a teologia de mercado, também conhecida como teologia da prosperidade. A teologia da prosperidade é a racionalidade do neoliberalismo aplicada ao fenômeno religioso. Ou seja, a fé evangélica, conforme entendida pelos reformadores, pautada nos ensinamentos de Cristo, perdeu a centralidade. O que vale mesmo é a preocupação com aquilo que a fé pode proporcionar. A fé não possui qualquer relevância social. É muito conhecida história a seguinte história: certo dia, alguém que se convertera chegou para Lutero e perguntou:

- Lutero, eu era sapateiro antes de me converter. Agora que sou convertido, como eu devo viver?" O monge agostiniano respondeu:
- Vai para o trabalho e faz o melhor sapato que conseguir.

Esta história serve para ilustrar o quanto a teologia da prosperidade é esvaziada de relevância social transformadora. O centralismo do ganho sobrepõe-se sobre a práxis cristã ensinada por Cristo.

(2) Estrutura-se na conformação do dogma, e não na dinâmica viva dos ensinamentos de Cristo - há inúmeras passagens nos evangelhos em que notamos a dinâmica viva do ensinamento de Cristo e a conformação com o dogma, com a tradição que, com o tempo, transforma-se em um evento sagrado. Jesus em vários momentos chamou a atenção dos religiosos do seu tempo. Para ele, os religiosos haviam perdido a referência fundamental da fé, que é a vida humana. Um exemplo se deu quando Cristo falou para os fariseus "que o homem não foi feito por causa do sábado; mas, o sábado, sim, foi feito por causa do homem". As necessidades, as dores, os dilemas humanos estão acima do dogma. Os fariseus tinham o sábado como um dogma cujo mandamento não poderia ser violado. Caso, alguém caísse em um buraco em dia de sábado, deveria ficar lá até o outro dia para que o mandamento não fosse suplantado. Jesus inverte essa compreensão. A vida estava em primeiro lugar em relação ao mandamento. Nota-se a igreja protestante atuando bem próxima da compreensão dos fariseus. Para ela, o moralismo da interpretação do dogma está acima das necessidades de cada de ser humano.

(3)  Conforma-se em conservar estruturas, ao invés de desafiar aquilo que é velho - existe uma razão no evangelicalismo, que o impele a não desafiar as estruturas de injustiça do mundo. Há um conformismo com as estruturas de opressão. Do ponto de vista político, a fé protestante coloca-se do lado do opressor e não do oprimido. Fazer trabalho social para muitas igrejas é distribuir sopa em hospital ou debaixo da ponte. Essas são ações imediatas e necessárias. Todavia, não se questiona o que leva as pessoas a estarem debaixo da ponte ou morando em calçadas úmidas. A fé protestante furta-se da defesa dos direitos humanos. Para ela, como foi afirmado por alguém, o importante é defender "os humanos direitos". Ela acaba por escolher um lado. Cristo afirmou certa vez que não veio para os sãos, mas, sim, para aqueles estavam doentes. Sua mensagem era transgressora, pois relativizava o poder religioso estabelecido à época.

(4) O fundamentalismo impede que os evangélicos sejam relevantes para a sociedade - o fundamentalismo religioso dos protestantes impede qualquer possibilidade de relativização. Ela se veste de uma compreensão absoluta, inegociável, eterna, imutável para além da história. Nas temáticas mais variadas, o que importa é a compreensão dogmática sobre o assunto. O fundamentalismo trabalha com a ideia de culpa e medo. Não seguir os ditames impostos pela linguagem religiosa, faz com que o crente se enxergue como um ser digno de condenação. Trata-se de um mundo em que a linguagem exerce uma coerção psicológica para que tudo seja medido. Tudo aquilo que esteja fora do padrão cultural estabelecido como aceitável é um assunto tabu, proibido, tido como pecaminoso. De onde surgiram tais mandamentos? Como se estrutura, qual a origem dessa linguagem dogmática? Muitas das compreensões sobre os padrões morais - o papel da mulher, como deve ser a relação, o namoro; a figura da homoafetividade; o modelo ético - são extraídos da cultura judaica. Dogmatizam-se os preceitos culturais, dando-lhes feições divinas, absolutas. O fundamentalismo, desse modo, acaba por alimentar a intolerância, pois não consegue dialogar com quaisquer outras manifestações religiosas. Há uma exigência, uma luta pela consolidação hegemônica visão protestante. A linguagem fundamentalista é totalizadora, pois não permite relativizações. Ela, simplesmente, impõe sem que haja tempo para dúvidas.

Sobre este ponto, as eleições presidenciais deste ano provaram isso de forma inquestionável. A figura do candidato vencedor, Jair Bolsonaro, era controversa. Ele é o típico indivíduo fundamentalista. Sua intolerância ou brutalização em torno de certas temáticas, explicitavam o quanto ele não estava/está disposto ao diálogo. Sua defesa da violência contra aqueles tidos como vagabundos ou, simplesmente, direcionados às mulheres, deixava qualquer pessoa com um senso de justiça, completamente estarrecido. Pois, boa parte dos cristãos evangélicos, escolherem essa figura caricata e insensível. Em nome de quem ou do quê? Dos bons costumes, da família tradicional e de um ódio ao diferente.

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