terça-feira, novembro 20, 2018

O moleque Ricardo de José Lins do Rego - algumas impressões

Li há alguns dias o quarto livro do Ciclo da cana de açúcar - O moleque Ricardo. Meu objetivo é fazer a releitura dos cinco livros. Iniciei esta semana Usina, o quinto e último da série - e o maior deles. O moleque Ricardo é uma espécie de digressão dentro do Ciclo. José Lins foca a sua lupa sobre a vida do "moleque da bagaceira", Ricardo. Nos três primeiros livros, Carlos de Melo é o centro da trama. Em Menino de Engenho, vislumbra-se a vida bucólica e repleta de descobertas do neto de José Paulino, o maioral do Engenho Santa Rosa. Em Doidinho, a experiência do engenho muda para a escola em Itabaiana. O engenho aparece como relâmpagos no espaço da memória do jovem Carlos. Em Bangüe, Carlos de Melo volta da Faculdade de Direito do Recife para tomar conta do Santa Rosa, após a morte do avô. Sua fraqueza e inabilidade, colocam-no em posição delicada na administração da propriedade rural. Se levarmos em conta somente os três primeiros livros, Bangüe é o retrato mais poderoso desenhado pela pena do escritor paraibano. 

Em O moleque Ricardo, a narrativa não tem mais curso na vida rural. Dos livros do ciclo é o que mais se engaja numa perspectiva política. A história acontece em Recife. Migra da Paraíba para Pernambuco. Talvez, as impressões tenham sido colhidas por José Lins no período em que estudou Direito na capital pernambucana. José Lins deixa entender que a história de O moleque Ricardo é anterior ao que se dá em Bangüe. Nos acontecimentos políticos que sacodem a narrativa, nota-se a presença de Carlos de Melo. Ricardo e Carlos de Melo se encontram. Miram-se e mantêm uma posição equidistante. Ricardo, o morador de subúrbio; e Carlos de Melo, o herdeiro do senhor de engenho, mas que se dispõe no envolvimento da luta política como um intelectual que tomava causa.

A vida de José Lins enquanto estudante de Direito foi marcada pela estroinice. Todavia, suas viagens pela cidade, fê-lo observar a vida marginal que se brutalizava e resistia às margens do rio Capibaribe; ou nos inúmeros mangues que existem na cidade. Ali a vida dos "homens caranguejos", como chamaria mais tarde Chico Sciense, desenvolver-se-ia com toda luta e resistência em meio à lama e o caos.

O livro é marcado por essas dores, por esses cheiros; pela desejo veemente de contornar a miséria. Ricardo passa a morar em um subúrbio. Trabalha na padaria de um português - Seu Alexandre. Alcança certa tranquilidade com o seu trabalho. Consegue fazer economias. Administrar com destreza o pouco que ganhava na padaria. Aos poucos ele começa a perceber um fluxo, um movimento de contestação. Ricardo saído do Engenho Santa Rosa à procura de melhores condições de vida, percebe que a cidade é o espaço da liberdade. Todavia, é uma liberdade repleta de limites. Na grande propriedade rural "tudo" é do senhor de engenho - animais, terras, homens, árvores etc. Na cidade, há a crença de que há uma liberdade, mas há uma asfixia social baseada no lucro e na propriedade privada dos meios de produção, que transforma tudo em mercadoria. Ricardo era o negro, filho de Mãe Avelina. Descendente de escravos, representa a segmentação da sociedade brasileira. 

O livro escrito em 1935, denunciava a formação social brasileira. Após da decadência da grande propriedade rural e do fim da escravidão, para onde fora o negro? Qual é o seu destino? O que se esperava dele? As palavras as palavras finais do livro denunciam justamente "a apartação social" vivida pelo negro numa sociedade de classes. Ricardo estava sendo levado com os seus companheiros para Fernando de Noronha. Havia participado de uma manifestação e o Estado usava da força para abafar qualquer insurgência social. “[...] Que fizeram eles? Ninguém sabe não! Mataram? Roubaram? Queriam de comer, queriam vestir, queriam viver. E as mulheres? E os meninos? Também chorariam de fome". 

É  o livro de maior ressonância social de José Lins do Rego. Atende bem ao momento histórico em que se vivia - efervescência no cangaço, consolidação de uma burguesia nacional; decadência do agrarismo, principalmente com o café na região Sudeste e a cana de açúcar na região Nordeste; o movimento integralista brasileiro; a tentativa frustrada de um levante comunista. O governo Vargas que recrudesceria em violência, levando ao golpe de estado em 1937. No meio desses eventos, está o negro e sua luta. 

É curioso notar que José Lins cria dois mundos: o mundo da cidade com sua latejante desigualdade e o mundo bom e idílico do engenho. O engenho, a vida rural, como uma espécie de Éden que se perdeu. Alinha-se com o pensamento daquele que foi o preceptor de José Lins do Rego, o pernambucano Gilberto Freyre, que voltara dos Estados Unidos na década anterior e apadrinhara o escritor paraibano. Freyre procurou formar uma sociologia brasileira. Revelar a identidade nacional. Todavia, ao fazer isso, entendeu que o presente deformara o passado. Há uma "saudade implícita" pelo sobrado da Casa Grande na literatura de José Lins do Rêgo, talvez uma aspecto colhido da obra de Freyre. Vale lembrar que Casa Grande & Senzala havia sido escrito em 1933. O moleque Ricardo é de 1935.

A escrita de José Lins do Rego continua, como nos livros anteriores, correndo fácil. Nesse sentido, é um escritor plácido e agradável como as águas do rio Paraíba, tão presente em O menino de engenho. Não há empolações. Rebuscamentos. Exageros. José Lins transmite suas impressões como se estivesse numa conversa com os amigos. Bebemos cada palavra. Sentimos o sabor da linguagem. Percebemos as nuances simples da fala das personagens. E seguimos, atentando para casa paisagem.

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