segunda-feira, junho 21, 2021

Algumas palavras sobre o capítulo 1 do livro de Jó

Propus-me a ler o livro de Jó, uma das obras magnânimas do Judaísmo e do Cristianismo. Pretendo ler um capítulo por dia. Jó é um livro bastante emblemático, pois possui uma teologia suscitadora de possibilidades interpretativas que chega ao terreno do mito. É inegável a sua magnificente estrutura poética. Já o li algumas vezes. Sempre ficou aquela sensação de que há, no livro, uma intenção sapiencial e moral em seu autor. Não se sabe ao certo quem é o seu autor.

Outro fato bastante curioso sobre o livro é a historicidade do seu personagem principal. Quem é Jó? O livro começa situando os leitores geograficamente: “Havia na terra de Hus um homem chamado Jó” (Jó 1.1)[1] .  É uma forma de posicionar o leitor para a história que vai começar. É muito parecido com “Era uma vez,...”, das histórias extraordinárias.

A personagem é apresentada e, de início, já se diz que ele é “um homem íntegro e reto, que temia a Deus e se afastava do mal”. A introdução procura estabelecer duas características para a personagem: (1) uma preocupação moral; e (2) uma preocupação religiosa.

No segundo versículo, os dez filhos de Jó são apresentados. E, somente em quarto lugar, aparece a fortuna da personagem. Não se fala nada a respeito, mas, nota-se que os anos se passam. Jó reúne a família. Há festas, banquetes, congraçamentos.  Um espírito de fraternidade e amor parece existir entre os irmãos. Mesmo com todas essas situações, Jó é escrupuloso ao ponto de oferecer sacrifícios ao seu deus (Jó 1.5).

A partir do versículo 6, há um deslocamento no texto. Assemelha-se a um efeito cinematográfico. “Os Filhos de Deus”, em certo dia, vieram se apresentar a Iahweh. Quem eram esses “Filhos de Deus”? Seriam deuses? Arcanjos? Entidades miríficas que habitam a eternidade? A imagem deixa a entender de que se trata de um panteão. Vale ressaltar que os povos vizinhos de Israel eram politeístas. Ou seja, acreditavam em vários deuses. Do ponto de vista histórico, acredita-se que os judeus absorveram muito da mitologia cananeia. Inclusive, há o entendimento por parte de alguns historiadores, que o próprio Yaweh tenha sido incorporado da mitologia dos cananeus.  

Outro aspecto curioso a respeito dessa narrativa é que entre esses “seres especiais”, apareceu “Satanás”. Observa-se, nesse sentido, que “Satanás” ainda não possui os atributos diabólicos que assume no Novo Testamento. Ainda não é o “Baal Zebuf” (“o senhor das moscas”). Ou seja, aquele que habita o mundo escuro. Questionado por Yaweh a respeito do que fazia, ele responde: “Venho de dar uma volta na terra, andando a esmo”. É como se vivesse de forma desgarrada dos demais seres eternos. Nessa separação, ele “espreita” a criação. É responsável pela fermentação de antagonismos.

Iahweh parece provocar a criatura que acabara de chegar: “Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e reto, que teme a Deus e se afasta do mal”. (Jó 1.8). Nota-se nesse sentido, que a observação em tom de arrogância provocativa vem do próprio Iahweh. Satanás retruca, afirmando que era muito fácil para Jó possuir todos aqueles atributos. Ele era protegido. “Porventura não levantaste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa e de todos os seus bens?”. (Jó 1.10).

O que mais impressiona nesse fato é que, a partir dali, inicia-se uma espécie de aposta meta-histórica. Algo que acontece numa dimensão imiscível, mas que passa a ter efeitos no mundo material. Iahweh autoriza que Satanás inicie um processo de teste extremo à fidelidade de Jó. “Pois bem, tudo o que ele possui está em teu poder, mas não estendas tua mão contra ele”. (Jó 1.12). Diz o texto que “Satanás saiu da presença de Iahweh”.  

Fenômenos terríveis começam a ocorrer com Jó. As suas posses são aniquiladas. Os seus filhos são assassinados ou mortos em desastres naturais. Mas, vale lembrar, que a manipulação dos elementos naturais, estava sendo realizada por Satanás. A consequência desses eventos é a miséria suprema de Jó. O ato de Jó foi ‘rasgar o manto’; ‘rapou a cabeça’; ‘caiu por terra’; ‘inclinou-se para o chão’. São gestos que atestam o não conformismo, mas, ao mesmo tempo, uma humildade, uma aceitação inquestionável. O capítulo 1 finaliza com a sentença objetiva: “Apesar de tudo isso, Jó não cometeu pecado nem protestou contra Deus”.

Nota-se nesse primeiro capítulo de Jó, pelo menos, duas perspectivas:

(1)    O destino e a sorte dos homens são decididos, muitas vezes, em “jogos” ou “apostas” meta-históricas. Iahweh parece ignorar todos os sofrimentos que seriam experimentados por Jó. Há um claro equívoco na perspectiva da bondade divina. A fidelidade como fica evidenciada nos versículos iniciais do livro, não é uma garantia de proteção e zelo divino. A principal preocupação de Iahweh é provar uma tese: a de que ele era temido por Jó, independentemente da situação. Ou seja, muitos dos eventos trágicos – enfermidades, acidentes variados, casos inexplicáveis – podem indicar a presença de um jogo. Isso do ponto de vista das leis naturais é absurdo. Há ainda uma clara falta de lógica no que tange ao controle dos fenômenos.

 (2)  A estrutura do texto possui claros elementos mitológicos. Assemelha-se às narrativas dos povos vizinhos a Israel. Afinal, a noção de seres eternos que reúnem para decidir o destino dos homens possui fortes relações com a mitologia grega, por exemplo. A intriga entre os desejos divinos, os caprichos que acometem os deuses, estão presentes na narrativa. Seres eternos estão preocupados com aquilo que os homens fazem ou deixam de fazer. Sentimentos humanos são direcionados a seres tidos como perfeitos. Essa personificação é comum em histórias de contos maravilhosos. Para aquele que crer, que aceita irrefletidamente os elementos do texto sem notar esses arranjos discrepantes, acomodam-se com facilidade esses eventos da narrativa.

Vamos ao capítulo 2.   



[1] Na leitura, estou usando a excelente tradução da Bíblia de Jerusalém.

 

Um comentário:

Mario Arkus disse...

Caro Carlino:

Vejo sempre seu blog mas não escrevo pelas minhas limitações com o português. O assunto do Jó desde meus tempos de criança foi para mim motivo de inquietação. Cada tanto ele me aparece, -apesar de eu não ser um leitor freqüente da Bíblia- como prova induvitável de que não é possível pensar em que o Deus do Antigo Testamento tenha alguma coisa a ver com aquele apresentado por Jesus e seus apóstolos no Novo.

Muito interessante ler seu primeiro análise sobre essa história do Jó. Há anos, e um pouco em tom de brincadeira, analisei com amigos um filme dos irmãos Coen, "A serius man", que tem muito dessa história atualisada, e evoquei os padecimentos do paciente Jó que me perseguem desde minha infância.

Aqui passo o link se você quiser ver esse texto escrito em espanhol com algumas piscadas locais.

Saudaçoes de Buenos Aires
Mario

http://provisorio987.blogspot.com/2010/03/un-hombre-serio-en-clave-de-job-o-jod-o.html