quarta-feira, janeiro 12, 2022

Seu Donato


 “A saudade é nossa alma dizendo para onde ela quer voltar”. Rubem Alves

                 O dia 11 de janeiro sempre foi uma data marcante para mim. É o dia de nascimento do meu pai. Ontem, por exemplo, caso estivesse vivo, completaria 67 anos de idade. Morreu jovem – aos 46. À medida que o tempo passa, mais se acentua a marca da distância. Vislumbro o acontecimento como se fosse uma miragem que ficou pelo caminho. Todavia, as marcas permanecem dentro de mim. Enxergo a face do meu pai. Ainda sou capaz de ouvir a tonalidade de sua voz. Fiapos do seu olhar.

            Ontem, 11 de janeiro, um outro impactante fato aconteceu. Seu Donato (era assim que eu o chamava), meu sogro, faleceu, vitimado pelos desdobramentos da Covid-19. Estava há 116 dias no hospital. Sua luta para resistir às investidas das infecções era diária. Várias foram as ocasiões em que foi entubado, tornando-se um visitante assíduo da UTI do Hospital Santa Marta de Taguatinga. Minha esposa, irmãos e familiares revezavam-se nas visitas diárias. As notícias oriundas dos boletins oscilam entre o otimismo brando e a gravidade preocupante. Ontem, após dias seguidos de um quadro gravíssimo, ele não resistiu e acabou vindo a óbito às 15h50.

            Fica um buraco no tecido do tempo. Uma lacuna imensa no quadro que compõe a vida. Seu Donato era um homem de boa palavra. Gostava de conversar. Trazia consigo a habilidade de contar uma boa história; de notar os detalhes de um acontecimento. Um exemplo, eram três canções de Luiz Gonzaga de que gostava bastante – “Riacho do Navio”, “Respeita Januário” e “Samarica Parteira”. Era comum avivar pontos; destacar fatos; trechos da composição; especificidades daquilo que passa batido.  Gostava de conversar com ele. Seu Donato era um homem metódico. Costumava realizar as coisas no seu tempo. Quando se prontifica a realizar algo, fazia tudo muito bem.

            Outra de suas habilidades era lidar com as crianças. Costumava inventar brincadeiras. Construir objetos. Improvisar. Ensinava músicas. Chegou a ensinar algumas composições para o Bernardo. É lamentável que Bernardo tenha perdido a convivência tão rica do avô aos três anos. Morre com seu Donato as empirias, as pedagogias do improviso; a capacidade de arrancar a alegria no riso do Bernardo.

            A ausência às vezes nos preenche mais do que presença. Em alguns momentos, é mais presença em nós aquilo que nos falta. Por isso, ficará esse espaço aberto. Quando íamos à sua casa, costumava ficar no quarto, administrando o tempo ao seu modo. Mais tarde, ao caminhar para sala onde a família se encontrava, proferia expansivo: “Boa tarde, pessoal!”  

            O sentimento que nos sacode possui uma face de tristeza, de sisuda gravidade. Nesse plano material, não encontraremos mais o seu Donato, não desfrutaremos de sua presença. Deve ser por isso que nossa alma resiste, enche-se de um rompente de insubmissa vontade. É o coração que experimenta saudade, essa força que insiste em nos remeter ao passado, pois lá se encontra a presença daquilo que já não é;  mora comigo o que já foi.

 

2 comentários:

Frazec (vulgo Jean-Philipe Rameau) disse...

Mues pêsames, Carlinus!
É muito triste ver tantas pessoas amadas indo dessa maneira, num tempo de horror.
Muito bonita sua homenagem a seu sogro e a seu pai, esses homens que você admira e ama.
Que a memória vertida em saudade seja um consolo, por pequeno que seja.

Carlinus disse...

Obrigado, Frazec.

Recebo daqui as suas palavras.

Um abraço!