segunda-feira, dezembro 30, 2024

Os becos e a memória

 

“...dizem uns que a vida é um perde e ganha. Eu digo que a vida é uma perdedeira só, tamanho é o perder”. P. 29


Terminei a leitura de minha primeira experiência com a prosa da escritora Conceição Evaristo. Em agosto de 2023, tive a oportunidade de vê-la na 1ª edição da Fli Paracatu. Escutei-a rapidamente em uma das mesas. Sua fala mansa, com o sotaque e a simplicidade da gente comum, traduzia muito bem a identidade de seus personagens. Acabei comprando um dos seus livros ao longo da Feira – Becos da Memória. Tive a oportunidade de lê-lo somente agora.

O título da obra é bonito, evocativo em seu delicado sentido poético e em sua significação literária. Becos são “quebradas”, locais de fuga, pontos de passagem - ou, simplesmente, um local de encurralamento, onde não há saída. Memória, por sua vez, é aquele local do indizível, dos afetos. É o lugar em que os fatos são colhidos pela subjetividade, mas a partir das experiências vividas pelo sujeito. Todo indivíduo possui memórias. Essas memórias são capazes de formar o terreno que estrutura a personalidade e fazem com que haja um sentido para o mundo. Um povo, uma comunidade, também, possui memórias. Ou seja, a memória é a categoria existencial que permite que os homens continuem homens e sejam capazes de se entenderem historicamente.

Dessa forma, beco, em sua semântica, pode suscitar a ideia de tortuoso. A memória, quando não escutada, validada,  pode se perder nas curvas da história. Principalmente, as memórias daquelas pessoas a quem não é dado o direito de ser. Essa dimensão está implícita na obra de Evaristo, principalmente no termo cunhado por ela – escrevivência (escrever + vivência). Essa aglutinação representa muito bem o projeto literário da escritora mineira, radicada no Rio de Janeiro.

A sua própria história permite que entendamos o significado dessa palavra. Evaristo - primeiramente - mulher preta, nasceu em Minas Gerais. Ainda muito jovem, foi para o Rio de Janeiro. Trabalhou como doméstica, algo tão próprio às mulheres de sua cor, às mulheres de sua origem. Foi a leitura, a escrita e as vivências que a fizeram sair do esquecimento subterrâneo. Atuou como professora. Formou-se em Letras. Fez mestrado e doutorado. Aos poucos, foi costurando as palavras e trazendo à tona os riscados do tempo que ficam em forma de memória.

Evaristo afirma que a memória do povo preto foi colocada em um limbo. Não foi dada ao negro contar e ressignificar sua própria memória. Alguém fala por ele; determina-lhes o local onde devem ficar; a forma como devem pensar; e o tipo de recorte histórico que devem realizar. Os negros foram aqueles que mais tiveram a memória roubada. É preciso reconstruir o passado, mas como não há documentos escritos em abundância, afinal, a história dos negros é uma história subterrânea, é preciso traduzir suas cores e potência por meio da ficção. A escritora afirma no texto que abre Becos da Memória que “nada que está narrado em becos da memória é verdade, nada que está narrado em Becos da Memória é mentira”. A realidade se apoia na ficção, mas a ficção também é um elemento que fornece mais conteúdo à realidade. Nos textos de Evaristo, as duas se irmanam para produzir a escrevivência. Alguns dos personagens do livro são reais como, por exemplo, o tio Totó.

Conceição Evaristo

O processo de transposição da escrita e da vivência não tem o objetivo de traduzir lutas individuais. Ela se assenta no coletivo. Se fosse apenas subjetiva, morreria no próprio indivíduo. A luta pelo resgate da memória não deve ser a luta de um sujeito refratário, mas de uma coletividade que se escuta e se entende. Em Becos da Memória constatamos esse movimento da apalavra à procura de tornar efetiva a luta pela existência de pessoas marginalizadas. Marginalizar é uma forma de impedir que a memória continue viva e pulsante.

Encontramos no livro um mosaico de micro-vivências, formando um tecido repleto de capilaridades. Os pequenos relatos formam uma paisagem em que há muitos elementos capazes de criar a uniformidade da dor. As personagens são desgraçadamente infelizes à sua maneira. O silenciamento cria uma aniquilação social. A impossibilidade da fala e da visibilização da miséria cria espaços para a violência contra essas existências; e essas violências são sentidas no corpo e, sobretudo, na impossibilidade de ser.

Confesso que não gostei da obra no início da leitura. Depois, fui me acostumando aos personagens. São homens, mulheres, crianças, velhos e velhas que carregam os dramas de milhões de pessoas que habitam favelas, morros e locais marginalizados; sobretudo, são mulheres, as primeiras vítimas da impossibilidade de terem memória e que sentem no corpo a violência do presente e do passado. Um livro essencial para que o país resgate a própria memória. Afinal, o Brasil é um país cheio de becos, de vivências fragmentadas, de história mal contadas, em que são privilegiados certos atores – e certas memórias.

sábado, dezembro 28, 2024

Os dez melhores filmes de Truffaut que vi em 2024.

Ao longo de 2024, excursionei pelo cinema de François Truffaut (1932-1984). Em outubro, completaram quarenta anos de sua morte. Morto aos 52 anos de idade (portanto, ainda muito jovem), o cineasta francês é um dos nomes mais expressivos da história do cinema. É daqueles nomes que se tornaram referência para outros bons diretores - Martin Scorcese, Brian de Palma, Francis Ford Copolla etc. No final de 2023, escolhi doze das suas mais de 30 produções, filmadas ao longo de mais de 30 anos.

Truffaut fez parte de um movimento cinematográfico surgido na França, denominado "Nouvelle Vague" ("Nova Onda"), que buscou romper com os padrões do cinema produzido até os anos 50. Ao lado de nomes como os de Jean-Luc Godard e Éric Rohmer, Truffaut foi um amante inveterado do cinema, vertendo para as telas a psicologia da modernidade. 

Mais do que qualquer característica, a "Nouvelle Vague" se destacava pela forma como se deveria contar uma história. Buscava romper com o simplismo do cinema comercial e impunha uma estética capaz de mexer com o espectador na forma como recepcionava cada produção. Para assistir aos doze filmes de Truffaut os quais escolhi, foi necessário muita atenção. Os diálogos são rápidos. Lancinantes; outros, dispersivos ou fragmentários. O enredo às vezes parece ser conduzido em direções impensadas. A noção de linearidade é afetada, o que demanda do espectador uma atenção excessiva. Essa característica sugere uma forma de retratar o aspecto veloz, transitório e de mudanças abruptas da modernidade. As mudanças sugeridas pela "Nouvelle Vague" enunciavam uma fixação pelo real em detrimento dos efeitos extraordinários tão comuns no cinema comercial. Foram colocados em evidência a luz do dia a dia, as trivialidades do cotidiano; a rua, as pessoas, o trânsito; as cores dos espaços abertos; as feições quase que naturais dos atores. A impressão que temos é a de que estamos ao lado, junto com o diretor, observando cada cena.

O que fica da "Nouvelle Vague" é a quantidade de imagens acumuladas na memória. O que conta é a experiência subjetiva do espectador. Terminei, por exemplo, de assistir, hoje, ao décimo segundo filme - "As duas inglesas e o amor" (para mim, um dos melhores filmes do diretor) e fiquei com uma impressão que não se fixa em apenas uma dimensão da obra. Nele, por exemplo, é possível observar como a noção de mudança da condição dos personagens não conduz a um final previsível, típico das produções previsíveis. Não há uma resolução. O que fica é aquela sensação de que a vida é uma obra sem acabamento e permeada pela incerteza. 

Eis a lista dos dez melhores filmes que vi do diretor francês:

1 - As duas inglesas e o amor
2 - Um só pecado
3 - Fahrenheit 451
4 - Na idade da inocência
5 - O homem que amava as mulheres
6 - Os incompreendidos
7 - Domicílio conjugal
8 - Beijos roubados
9 - Atirem no pianista
10 - O último metrô

P.S. A lista completa está aqui.

terça-feira, dezembro 24, 2024

12 livros de literatura brasileira para 2025

 

Nos últimos três ou quatro anos, tenho empreendido uma jornada pela literatura brasileira. Escolho, no início do ano, doze livros de autores nacionais para ler - um por mês. Privilegio os clássicos. Isso tem me permitido entrar em contato com muitos livros que sempre sonhei ler. Estimo bastante os escritores brasileiros. Conhecer os escritores nacionais é conhecer nossa história, nossas crenças, nossos pecados; e nossas belezas também.

Em 2024, não cheguei nem à metade dos doze livros. Finalizei apenas cinco. Distrai-me com outras leituras. Aqueles que não foram lidos este ano, migrarão para a lista de 2025. A única releitura que farei fica por conta de "Iaiá Garcia", de Machado de Assis. Li-o há bastante tempo. Preciso revisitá-lo. Lerei um novo Jorge Amado. Tenho tentado ler um Jorge por ano em ordem cronológica. Lerei mais uma obra de José Lins do Rego - dessa vez, Eurídice.  A prosa do escritor paraibano é, para mim, viciante. Após a leitura de "Eurídice", terei concluído toda obra romanesca de Zé Lins. 

Voltaremos a ler Carlos Drummond. Em 2023, tive a grata experiência de ler "A rosa do povo", um livro cuja escrita aponta para a visão pessimista do autor. Foi uma das melhores leituras que realizei aquele ano. Escolhi, dessa vez, "Claro Enigma", pois é um dos seus livros mais significativos. Voltaremos aos labirintos da escrita de Clarice Lispector. Leremos Lima Barreto, um dos seus poucos livros que ainda não li. Já Cornélio Penna e Pedro Nava não são escritores tão conhecidos do grande público. Estão restritos ao círculos acadêmicos. Preciso conhecê-los. Há ainda Cascalho, de Herberto Sales, que trata sobre o curto ciclo minerador na Chapada da Diamantina. E ficaram os calhamaços Crônica da casa assassinada e Grande Sertão: Veredas, dois dos livros mais importantes, no século XX, escritos no Brasil.

Eis a lista:

  • A menina morta - Cornélio Penna
  • A maçã no escuro - Clarice Lispector
  • Grande Sertão: Veredas - João Guimarães Rosa
  • Baú de ossos - Pedro Nava
  • Crônica da casa assassinada - Lúcio Cardoso
  • Cascalho - Herberto Sales
  • Numa e a Ninfa - Lima Barreto
  • Claro Enigma - Carlos Drummond de Andrade
  • Iaiá Garcia - Machado de Assis
  • A alma encantadora das ruas - João do Rio
  • Eurídice - José Lins do Rego
  • Jubiabá - Jorge Amado

segunda-feira, dezembro 16, 2024

A descoberta de si e o proibido, segundo Alba de Cespedes

 

“Antes, eu esquecia rápido o que acontecia em casa; mas agora, desde que comecei a anotar os eventos cotidianos, mantenho-os na memória e tento compreender por que se produziram”.

Valeria, personagem do livro “Caderno proibido”.

 

 Alba de Céspedes foi uma importante e arrojada escritora de família ítalo-cubana. Sua mãe era italiana, já o pai, de quem herdou o sobrenome de Céspedes, era cubano. Diplomata de profissão, morou em vários locais da Europa, o que permitiu a Alba um olhar privilegiado sobre a situação do seu tempo nas primeiras décadas do século XX. De família economicamente privilegiada e de posicionamento progressista, de Céspedes, desde muito cedo, foi uma observadora privilegiada. Chegou a ser presa em 1935 por sua militância antifascista.  

Ao longo de sua prodigiosa carreira, de Céspedes foi roteirista de cinema, poetisa, dramaturga, romancista e, sobretudo, uma mulher à frente do seu tempo. A escritora é reputada como uma das mais importantes feministas do século XX na Itália. Essa sua posição que ajudou as a mulheres a refletirem a própria condição, foi demasiado necessária do ponto de vista político.

Em “Caderno Proibido”, encontramos um dos seus mais conhecidos e bem escritos textos. Do ponto de vista da estrutura narrativa, o mote parece simples, sem maiores sofisticações. Um certo dia, uma mulher de pouco mais de quarenta anos, portanto, ainda muito jovem, mãe de dois filhos, casada, vai a um estabelecimento comercial a fim de comprar cigarros para o marido. Era domingo. Inopinadamente, ela decide comprar um diário. Era proibido comprar um bem daquele em pleno domingo. Conseguiu convencer o vendedor arredio que a aconselhou a esconder o caderno “embaixo do casaco”.

Alba de Cespedes

É, a partir dessa ação aparentemente banal que descobrimos quais são os dramas, fatos e contradições que existem no interior da personagem. Narrado em primeira pessoa – afinal, é assim que se redige um diário -, o texto é eloquente em seu movimento subjetivo.  O diário, geralmente um portador de texto que é costurado na adolescência, no romance, é escrito por uma mulher madura, de 43 anos de idade. Ela o escreve em um período de aproximadamente seis meses. Das primeiras anotações até as últimas, pode ser observado um movimento de transformação – no princípio tímido e, consistente, à medida que certa disposição interior ocorre. O diário funciona como um dispositivo que permite a personagem entrar em contato consigo mesma.

Tendo quarenta nos anos 50, em uma Itália dilacerada pela experiência do pós-guerra, Valeria carrega consigo a formatação de um tipo de consciência histórica. Sua filha Mirella – de vinte anos – é a personagem que consegue elaborar as reflexões mais duras e realísticas com a mãe. Riccardo, o filho que Valeria trata com máxima tolerância, reproduz o modelo masculino, criado para ter os privilégios que a sua condição de homem permite. Michele, o companheiro de Valeria, é um tipo afetivamente desidratado por quem Valeria já não nutre os mais cálidos sentimentos. Apenas um respeito vazio e obrigação tácita adquirida pelo dever imposto pela relação monogâmica. A relação dos dois recebe as primeiras cintilações da mornidão. Michele a chama inadequadamente de “mamãe”. E ela atende os requisitos da “mamãe” de todos. Exerce aquela condição própria da mulher pequeno-burguesa. Na Itália pós-guerra, é obrigada a trabalhar a fim de engrossar o orçamento familiar. Envolta pela rotina e pelo trabalho, da preocupação com os afazeres domésticos, Valeria percebe o quanto é despersonalizada da sua condição de mulher; ou pelo menos procurar entender aquilo que lhe é desconhecido.

Valeria experimenta uma contradição, pois descobre que sua jovem filha está tendo um caso com um homem casado. Isso a incomoda. Cria um cenário para disputas e conversas desgastantes com filha. Mirella diz que a pessoa com que está se relacionando, encontra-se em processo de divórcio. Por sua vez, após muito refletir, Valeria vê-se enleada por uma paixão com o seu chefe. Ela gravita entre os deveres de uma boa esposa; de uma dona de casa ciosa pela sua condição e a experiência fagueira da paixão, experimentada com Diego, seu chefe; um homem rico e afetuoso.

Valeria para se conhecer, para desmantelar o papel social que lhe foi atribuído, precisa experimentar o proibido. Escreve de forma clandestina, geralmente, “nos pontos-cegos”, ou seja, quando fica sozinha ou tarde da noite, quando a família vai dormir. Para viver uma sexualidade diferente, ela se relaciona com outro homem, mesmo estando presa a um relacionamento de mais de vinte anos.  O diário permite que a personagem venha a se dá conta da própria subjetividade. Esse movimento ocorre após a observância da própria transformação. Na parte final da obra, ela afirma como se já estivesse plena e consciente da sua obra realizada: “...todas mulheres escondem um caderno negro, um diário proibido”. Essa afirmação sugere que, no fundo, as mulheres possuem um conhecimento de sua própria condição, o que é questionável pela experiência.

“Caderno proibido” é uma obra desafiadora e de bom gosto. Sua escrita é viciante. Há quem afirme que foram os textos de Alba de Céspedes os responsáveis pela escrita ácida de Elena Ferrante. Entende-se o porquê. De Céspedes foi uma escritora poderosa, de um estilo caudaloso, que muito diz e insinua a respeito da condição da mulher do seu tempo; das mulheres que guardam diários e que experimentam o proibido com a finalidade de realizarem autodescobertas.